segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Vai entender...I


O mundo está virado de ponta à cabeça, ninguém fala mais a mesma língua, há de ser poliglota para entender até seu amigo de uma vida toda.
Cada dia está ficando mais complicado entender as pessoas através das palavras. Eu não sei bem qual é o problema, mas os diálogos tornam se cada vez mais incompreensíveis. As palavras têm sido usadas para fins que não lhes foram atribuídos. Cada palavra tem uma significado e pode ter vários mas o emprego delas tem que ser minimamente respeitado. O tal de “com isso eu quero dizer”, pode ser dispensado, a palavra para o mundo dos mortais tem que significar uma coisa só naquele contexto e não se discute. Quanto à sofisticação da retórica, seu uso deve se restringir a situações que têm a ver com o interlocutor. Mas no cotidiano batata é batata e não "má nota" senão a incompreensão é batata. Os diversos significados de algumas palavras é indiscutível , todavia há por parte de um certo tipo de pessoas, que tem se multiplicado, a crença de ter o status de erudito garantido falando “difícil”, ou usando têrmos que poucos entendem, e às vezes nem os próprios falastrões. Isso, no entanto, não importa, o quê realmente importa é que quanto mais simples fôrem as palavras e claras fôrem as frases, mais rápido a gente fica livre de conversar com os outros e das incansáveis explicações do significado que cada um escolhe para “suas” palavras. Não poucas vêzes as frases são tão truncadas que a resposta ao pedido de uma melhor explicação é uma outra ignomínia do tipo “você entendeu, né?” Não, não entendí e se entendí foi do meu jeito, amanhã passo a estória prá frente, o que é um hábito do qual muito me orgulho, e o outro afirma que estou inventando. Venho sofrendo muitas injustiças pelo uso indevido da palavra, dos outros.
Até para se orientar sobre os estabelecimentos que comercializam um determinado tipo de mercadoria, não podemos mais confiar nos nomes das lojas, que em geral, não têm nada a ver com o produto em questão. Por exemplo, Chicletes com Banana não é sacolão, é loja de roupas. Topa tudo, não é rendez-vous, é loja de móveis usados. Doce Docê, não é da gente, tem dono, e se você pegar alguma coisa sem pagar, cana, que também não é de açucar. Sabor de Mel não é um apiário e sim uma invenção moderna, comida a quilo, todo mundo sabe quantos quilos você come por refeição, uma exposição pública da esganação humana. Na Galinha Ruiva nunca encontrará ovos, só pães. Red Lips não é loja de cosméticos, mas de sapatos. Comprar disco barato em Belo Horizonte é na Sem Nome, roupa de gordo na Varca, Fofão é uma casa de lanches, comer lá significa que em pouco tempo será conhecido pelo nome do estabelecimento. Não procure uma partitura musical na Alegretto, lá encontrará bijuterias. Não podemos esquecer dos grandes monarcas, Rei do Pé de Porco, Rei dos Calçados, Rei do Tic-Tac (relojoaria) e vai por aí. Espero que não apareça em breve O Rei Vesgo para eu poder marcar uma hora com o oftalmologista.
As situações se complicam porquê se um cara de shorts e tênis te pergunta onde é o Mineirão (supermercado de Belô), você tem que perguntar o que êle realmente procura, caso contrário, a informação será errada. O cara queria comprar arroz e feijão e você o manda para o estádio de futebol, sacanagem.
Outra coisa interessante é observar o nome das marcas de certos produtos em supermercados. Uma vez perguntei a uma amiga na padaria se ela ía de Seven Boys e ela me respondeu, vou, mas um de cada vez. O marido perguntou à mulher se ela queria um “Bis” e a assanhada já queria saber se era ali mesmo. Até hoje nínguem descobriu porque um certo sabão em pó foi chamado de Omo quando essa palavra significa prematuro, isso sem contar o da marca Minerva que de deusa da sabedoria virou branqueador de roupa encardida. Os absurdos continuam e se proliferam. Adoro as marcas dos secos e dos não secos, tem a farinha de trigo Boa sorte, o fubá Mimoso, o polvilho gay, Marinez, o santo arroz São Jõao, a ervilha Jurema e o leite condensado que é Moça há um século, isso é uma sorte verdadeira. Nada disto teria importância se ao longo do tempo os produtos não passassem a ser identificados com as marcas, e é por isso que os desavisados ficam atônitos quando escutam duas donas de casa conversando. Pois é, ontem bati um bolo com Boa Sorte depois de lavar a cozinha com Minerva porque o Omo está muito caro, comi 3 Bis, 2 Seven Boys e temperei a salada para o jantar com o Gallo porque a Andorinha voou. Pelo amor de Deus, já pensaram que luta tirar azeite de um galo ou de uma andorinha? E ordenhar uma moça para ela dar leite doce e cremoso por toda a vida? Isso só pode ser malvadeza.
E as oficinas? Há uma proliferação delas. Temos a Oficina do Pão, a Oficina de Música, a Oficina dos Calçados, a Oficina das Meias, a Oficina dos Móveis, a Oficina das Trufas, a Oficina da Pizza, a Oficina do Cabelo, a Oficina do Pezão, até anjo virou artigo de oficina, visite a Oficina dos Anjos, é muito linda, só tem anjo trabalhando, de asa e tudo. Brevemente vão inaugurar a uma casa funerária com o sugestivo nome de Oficina dos Defuntos e uma outra mais original ainda, Defunto e CIA ou Rígido e Calado, é patético, mas verdadeiro, Parafuso e Cia, será o prego?

E lá vou eu….Alguém há de ser normal. Amanhã escrevo mais, se tempo tiver.

sábado, 24 de outubro de 2009

Da Conquista I


Há muito venho querendo ensinar algumas coisas aos homens, vou fazê-lo muito embora esteja certa que êles nunca vão me ouvir, no entanto afirmo antecipadamente que aquele que me der crédito será o queridinho das mulheres.
Só para dar uma informação importante e que os homens prestem bem atenção, isso aqui não sou eu que penso e sim a grande maior parte das mulheres. Logo, se você leitor masculino não se der bem na aplicação desses ensinamentos foi porque se deparou com a menor parte. Azar o seu.

DA SEDUÇÃO.
Esse é o momento.Lembre-se do dito popular, "ninguém tem a segunda chance de dar uma boa a primeira impressão". Uma única resvalada para a idiotice, perdeu a mulher e ganhou a maior difamadora de seus anti-encantos. Sedução é uma arte e como toda arte poucos a têm, logo, seja crítico de si próprio para não exorbitar e ser prescrito em horas de conhecimento. Vamos começar pelos olhares, os mais discretos e furtivos causam um maior descontrole hormonal, encarar, apertar os olhos (gênero míope), piscadelas, olhos carentes, olhos lascivos, olhos artísticos, olhos varredura, jamais, as moças desprezam. Na apresentação mostre-se tímido, mãos firmes no cumprimento, nada de apertões à moda de quebrar nozes, simpatia em excesso é para amigos, gargalhadas só se quiser ser morto a pauladas, as conexões “te conheço de algum lugar” ou "nunca te vi e sempre te amei", podem gerar um mal-estar horrível. Não há nada mais artificial e fora de lugar que declarações a pessoas que mal conhece. Esse é o tipo do sedutor popular, muito comum. O inteligente é o "nunca te vi", sem ser acompanhado pelo “que falta de sorte meu Deus”, essa crise de encantamento deve ser evitada para que no futuro não seja essa frase colocada ao lado dos ditos malditos. Ah, nomes, sobrenomes, lugares que frequenta, profissão, não interessam, você só a vê, o entorno é secundário. Esse conselho parte do pressuposto que o cadastro já tenha sido feito e aprovado. Ela ficará encantada ao saber que “nada interessa, só esse fogo que nos liga”, e isso não é para ser falado, frases românticas têm hora, se fôr fora de hora mesmo que sinceras lhe valerá a alcunha de homem de pouca marca. Caso o tema da conversa seja sobre relações pretéritas, seja inteligente, o que passou passou, análises da vida, falar mal da “ex”, preleções sobre o “free again”, execrar o dinheiro pago à pensão, nunca, isso pode ser sua sentença de morte, tenha sempre em mente que as mulheres são ardilosas, fantasiosas e comentadoras. Além disso você nunca conquista só uma mulher, atrás dela estão as amigas boazinhas, as maldosas, as invejosas, as burrinhas, as inteligentes e as feministas, logo, seus sentimentos espúrios devem ser resguardados dos vaticínios agoureiros dessa “fauna invencível”. Quanto ao pedido do número do telefone, faça-o discretamente e ligue, ao dia seguinte. Se não tiver a intenção de ligar não peça, pense que dois dias de ansiedade na alma feminina podem te valer uma vida de retaliação. Por isso a ordem é: tenha postura de homem ou então bye, bye. Pedir telefone ou endereço por vício é coisa incompatível com a modernidade.

DA FORMA DE VESTIR

Vestir bem é privilégio de poucos, demanda bom gosto e algum dinheiro. Mas a aparência mesmo que com uma roupa simples e fora de moda, é fundamental. Estar com a roupa impecável, cabelos limpos e penteados, unhas limpas, desodorante em dia, dentes escovados, são detalhes tão óbvios que não deviam ser mencionados. Mas essa não é a tônica masculina, quanto descuido meu Deus! Mulher agrada de homens bem arrumadinhos. A farda é uma unanimidade, compre uma. Mulher ama, fica louca, perde o juízo por um homem fardado, a patente, essa não importa, nem necessária é, o negócio é a farda, as botas, o quepe (se o tiram e o atiram sobre uma mesa as mulheres caem umas por cima das outras, a arma na cintura,cara impenetrável, é coisa de qualquer mulher perder os sentidos. Quando eu era criança, tínhamos uma empregada doméstica que adorava levar a mim e minha irmã para passear perto do quartel só para ver os piriquitos, era como carinhosamente se referia aos soldados. Um dia ela contou que sonhou que um monte de periquitos tinha dado bicadas nela a noite inteira, eu, penalizada, demorei 20 anos para entender a cara de alegria que ela manteve todo o dia depois de tanto sofrimento. A farda é poderosa, seja do exército, marinha, aeronáutica, e se você não puder comparecer, mande a farda, ela em sózinha dá conta do recado. Isso é também uma substituição, uma alternativa simbólica porque os homens têm tido muitos problemas na área das armas, passar uma mulher nas armas com competência atualmente só as Forças Armadas, caso contrário, é o desarmamento total. Ao lado dessas observações há de se considerar que o soldado representa uma coisa ligada à defesa da Pátria e as mulheres amam a Pátria, esse sentimento patriota é transferido para os soldados que em última análise morrem por ela e nós morremos por êles. Só para tirar a prova da verdade do que digo, comprem uma farda da Marinha, por exemplo, e deêm um bordejo por aí, se fôr em Minas, o sucesso é redobrado, farda e mar, realização imbatível do desejo. A idéia de ter um batalhão de soldados, todos saradinhos, cabelos cortadinhos, impecavelmente vestidos, botas lustrosas, batendo continência a torto e a direito, marchando com o passo sincronizado e de repente levantar aquelas escopetas pesadas com um braço e de uma vez só, é a própria invenção do capeta. É duro, mas desconheço um mulher que despreze um soldado que dirá um batalhão inteiro, quanta alegria. Conselho: em caso de avaria nas armas ponha no video um filme de guerra e estará livre da convocação para essa outra guerra inglória.

DOS DIÁLOGOS

Essa coisa de diálogo aberto, invenção do anos 70, foi determinante para o caos social, ninguém mais quer saber de conversinha bizantina,aquelas que vocês já conhecem e bem. Não há mais segredos, todo mundo conta tudo, mulher não suporta guardar segredos. Nada de diálogos e tertúlias intermináveis. Há o papo-cabeça, esse é o mais forte candidato a ser abatido a tiros. Conversa boa é conversa cheia de risos e casos palpitantes, o resto é balela. Em geral mentirinhas..."sou assim"...e daí sai uma enxurrada de impropérios. Em dois meses de convivência a mulher já sacou, se esperta for, que você não "é assim". Cantar a própria glória. "Nunca fui atrás de mulheres, elas vieram a mim". Esse é o narcisista incorrigível ou o incompetente que não tem cacife para dar uma cantada irresistível. Melhor confessar de cara: "sou um babaca pela própria natureza". A mulher não acredita e você está salvo.

DO DINHEIRO

Esse é o pior, mulher gosta e muito. Homem sem dinheiro é sem valor.
Mas não fiquem tristes, mulher de verdade gosta é de beijo, beijo na boca, olho fechado, mãos que acariciam os cabelos, (pode arriscar até uma lágrima furtiva, é parte do show até há pouco tempo prerrogativa feminina), palavras doces...sem exagero. Quanto ao dinheiro, pelo menos as suas próprias contas, pague você. A curto prazo mulher moderna dispensa homem oportunista, a médio prazo toma antipatia mortal e a longo prazo prefere a morte em um garrote vil a pagar contas para homens. Nesse ponto o homem tem que convir que apesar da liberação feminina, o mundo de hoje pressupõe a igualdade e não a inversão dos papéis. Há homens que trazem por uma vida um escorpião no bolso. Ademais é feio, uma vez ou outra vá lá, mas sempre,convenhamos, torna uma marca indelével desse tipo explorador. No entanto, toda regra tem exceção, muitas vezes paga quem tem mais, e se for a mulher...que pague ela, sem chôro nem vela. Só para relembrar o passado, muitos homens foram à miséria por se submeterem aos caprichos femininos. Isso aí é um anacronismo, logo não dê dinheiro às mulheres, mas por princípio de ordem moral, também não tome. A vida é dura!!!!!Cada um por si Deus por todos. Assim fica todo mundo feliz.

E lá vou eu, depois vem mais.

O CIRCO III




Ao dia seguinte a cidade mal dormida se preparava para a avant-première do Gran Circo Trota Mondo. Rita que nunca saía dos limites da fazenda, com a anuência de Dona Eralda, ultrapassou-os uma hora antes do início do espetáculo e entrou com toda sua estranheza para dentro da lona colorida, ela também queria ver o circo. Assistiu impassível o show até quando se deu a hora esperada por todos, a apresentação dos trapezistas. A música empolgava a platéia, ao lado dela os tambores marcavam a cadência do perigo iminente. Rita olhava entorpecida para os trapezistas. Talvez os invejasse em seus mirabolantes vôos ou então na intimidade que demonstravam com o trapézio. Acabado o show foi anunciado que a cada dia da temporada os artistas apresentariam uma novidade, e no último dia do circo em Colina Velha os trapezistas, com os olhos vendados, apresentariam o mundialmente famoso triplo salto mortal.
Rita foi a todas as apresentações acompanhada por Dona Eralda que se sentia muito feliz em saber que Rita gostava de algo mais que o arco-íris e suas árvores de jasmim enfileiradas em ordem crescente. Dona Eralda observou que as mãos de Rita ficavam úmidas e cerradas enquanto as piruetas no ar não cessassem. Realmente o circo exercia um fascínio mágico em Rita, a estranha Rita.
No derradeiro dia da estadia do Gran Circo em Colina Velha, Rita amanheceu com os olhos inchados, Dona Eralda desconfiou que a moça teria chorado durante a noite, mas nada comentou. Uma hora antes da apresentação encaminharam-se para o circo, afinal seria o dia do grande show. Sentaram-se na primeira fileira e dali assistiram os palhaços e suas palhaçadas que Rita não achava graça, viram o contorcionista, viram o desfile de cavalos com os equilibristas dando cambalhotas sobre os animais com precisão matemática, viram os domadores que com apenas um chicote controlavam as feras que pareciam cansadas daquele cativeiro perpétuo. Depois de quase duas horas de apresentação chegou o esperado Gran Finale, em fila os trapezistas entraram no picadeiro correndo e fazendo mesuras ao público que regozijava de felicidade.
Começou o show com as acrobacias no trapézio, piruetas no ar, troca de duplas, um verdadeiro ballet voador onde o tempo e o equilíbrio significavam para o artista a própria vida. Era o mundo circense encantando e provocando a mais forte adrenalina nos pacatos moradores de Colina Velha. Depois das apresentações mais simples os tambores começaram a soar de forma rigorosa impregnando o ar com o suspense que anuncia a morte. Os trapezistas subiram até o trapézio e fizeram algumas apresentações até que o silêncio invadiu todos os espaços da cansada lona, que tremia ao som dos tambores, vigorosos e ameaçadores tambores.
O primeiro salto mortal, foi exibido por um rapaz muito baixinho e magro, o sucesso foi tão grande que as arquibancadas balançaram-se com o entusiasmo da platéia. O segundo salto foi a estréia de um rapaz jovem, muito bonito, vestido de branco e dourado, para ele aquela era uma noite de gala, seu salto seria o triplo, o mundialmente famoso salto mortal triplo. O jovem teve seus olhos vendados, sentou-se no trapézio e começou um leve balanço enquanto o companheiro que lhe faria dupla esfregava nervosamente as mãos. A rede foi tirada e o silêncio sepulcral tomou o lugar como se tivesse vindo para ficar. Nessa hora Rita à semelhança do branco do mármore preservou seus olhos de qualquer imprevisto. Poucos segundos depois os aplausos, assobios e gritos invadiram o circo. O salto foi perfeito, impecável. Para os olhos cerrados de Rita o som informava que a vida vencera à morte. O jovem emocionado abraçava os colegas de tão perigosa façanha e com os braços levantados agradecia à fiel platéia. Nesse momento todos os artistas do circo entraram no picadeiro, fizeram um agradecimento coletivo a todos os habitantes da cidade. Sob a vibração incessante do público as luzes foram apagadas uma a uma até que a meia luz o circo ficou inteiramente vazio.
Na manhã seguinte quando Dona Eralda chegou na cozinha viu que Rita ainda não se levantara, foi ao seu quarto e ela ali não se encontrava. A mulher que já tinha uma verdadeira afeição pela moça, sentiu uma profunda dor no peito, mas entendeu que ela desapareceria como apareceu, sem uma palavra.
Na rua principal da cidade os caminhões do circo já se encontravam perfilados para a partida. Os habitantes também estavam perfilados para a despedida. Depois dos motores ligados começou o lento movimento dos carros deixando para trás uma cidade tristonha com saudade antecipada.
Andaram quase quatro quilômetros quando o motorista da caminhonete deu uma súbita freada à entrada de uma ponte muito extensa. Bem em cima da murada que ladeava a ponte estava uma moça se exibindo, à moda dos malabarismos apresentados pelo circo. Seu Fernandez, dono do circo, sentado ao lado do motorista sentiu um tremor percorrer lhe as veias, era como seu sangue mudasse a direção do fluxo. Ele conhecia aquele corpo esguio, aqueles cabelos negros que ao vento voavam como flechas, aquela leveza no salto e equilíbrio na parada. Não, no mundo não havia igual. Desceu enlouquecido da caminhonete gritando: Lina, minha filha, meu amor, até que enfim eu te encontrei. Jogando-se tragicamente no chão, deixava que grossas lágrimas escorressem-lhe pelo rosto amargo e enrugado, lamentava pelo tempo de sua ausência que tamanho sofrimento tinha infringido a ele. Rita, indiferente à cena, prosseguia em evoluções perfeitas.
Contrariamente a exuberância de sua apresentação, seu espírito, em dolorosa incursão à memória ouvia como se fosse naquele exato momento, os gritos furiosos de seu pai há quinze anos atrás, quando ela deu à luz a um filho e foi covardemente expulsa do circo, depois de ter a criança violentamente arrancada de seus braços. Ainda sentia no rosto o peso da mão de D. Fernandez , para livrar-se dela que o agarrava desesperadamente suplicando por clemência e piedade. Ressentia da impostura de sua mãe que nem por um segundo interferira por ela para aplacar a fúria do pai. A sua mente vinha o olhar cínico de Jorge, o domador de animais, que brutalmente a domou e acovardou-se para confessar a verdade perante a ira do patrão. Seu filho não tinha pai. Jogada para fora do trailler Rita, com apenas quinze anos, foi abandonada à própria sorte.
Desesperado, arrependido e culpado, Dom Fernandez explicava à Lina que tudo aquilo tinha sido apenas uma reação de momento, implorava por seu perdão, pranteava pelos quinze anos sem a filha adorada, jurava que por todo esse tempo, encontrá-la era sua obsessão. Enquanto os artistas se acercavam de D. Fernandez , o trapezista que dera o salto mortal triplo na noite anterior, desceu do trailler para ver o que estava acontecendo do lado de fora. Quando o viu, o avô gritou, venha Yuri, essa é sua mãe, ela voltou Yuri, ela não vai nos abandonar nunca mais. O jovem a olhou com o ar de desprezo do filho abandonado pela própria mãe. Rita parou como se estivesse em estado de concentração. A palavra abandonar ecoava em seus ouvidos e tinham o efeito de lâminas dilacerando seu corpo. Seu pai, sem consciência do ódio irreversível e sem limites da filha, foi se encaminhando cambaleante para sua direção com os braços abertos e uma certa expressão de alívio na face até então transtornada. Rita balançou negativamente a cabeça, lançou um olhar mortal para o pai, andou três passos para trás e seus pés decididos impulsionaram seu corpo para alto no mais perfeito salto triplo mortal. Não tinha os olhos vendados, a rede foi a correnteza do rio que a acariciou e acolheu como o fez Dona Eralda, seu anjo da guarda.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O CIRCO II


Um belo dia daqueles que não ameaçam a ninguém, o céu estava colorido de azul sem que uma única nuvem maculasse sua pureza, enquanto o tempo esperava passar-se, ouviu-se de longe uma música que aumentava à medida que se aproximava da cidade. De repente surge uma caminhonete iluminada que cantava a plenos pulmões músicas de gente feliz. Atrás dela seguia uma grande fila de caminhões coloridos. Toda aquela alegria só se assemelhava ao cortejo de um circo, e o era. Nada acontecia em Colina Velha, a surpreendente chegada de um teatro ambulante era um evento de tão soberba importância, que os mais cultos e viajados tinham que contar à pobre população o que era aquilo, essa não sabia o que era um circo, ou nunca tinha visto um. A honra da visita trouxe tanta emoção para os colinenses que a natureza se viu obrigada a solidarizar-se com eles e tomar sua diligências. O vento acordou de seu sono de quase três semanas e varreu desvairadamente as ruas. A poeira era tanta que o céu encarregou-se de lavar o ar, executou a tarefa tão rapidamente que em menos de dois minutos já não haviam sinais que denunciassem o grande temporal, Colina Velha estava vestida de gala para a festa, seria aquilo um milagre? Depois de ceder aos caprichos do céu, o sol voltou a brilhar com seu singular esplendor, mas sua vocação democrática abriu alas para que um enorme arco-íris, imitando a aurora boreal, desse o toque final no divino show. Velhos, jovens, crianças corriam à rua principal da cidade para receber o nunca visto. A cidade estava em estado de torpor. O circo era a ilustre visita que Colina Velha recebeu de braços abertos e sorriso escancarado.
Frei Martinho conhecido e respeitado por seu fervor religioso revelou-se quando viu o grupo de palhaços no grande desfile. Mandou que os moleques da cidade, em rara concessão, repicassem os sinos da igreja. Gritava desesperadamente para os fiéis que as atividades religiosas estavam suspensas enquanto o circo estivesse na cidade, justificando que o sagrado e o profano não poderiam atuar juntos.
Eufórico, confessou a uma beata que não lhe dava trégua, que sempre sonhou em ser palhaço, mas como não tinha graça nenhuma entrou para a Ordem de São Francisco de Assis. A mulher que nutria pelo padre uma católica adoração, ficou tragicamente arrependida por ter confessado aquele palhaço frustrado seus pecados veniais e mortais. Mas o melhor ele guardou para si, era o segredo que mantinha sob a batina. Todas as noites depois da missa quando estava a sós na Igreja de São Francisco, onde era pároco há nove anos, Frei Martinho, se livrava da farda, colocava uma calça listradinha e uma camiseta justa e cuidava do altar fazendo gracinhas, revirando-se em cambalhotas e pondo língua para a imaginária platéia. Um dia, não há muito tempo, quando estava no auge de sua apresentação, bem defronte ao Santíssimo, seu Áureo, o sacristão, flagrou Frei Martinho ensaiando um contorcionismo incomum em um clérigo. Horrorizado seu Áureo deu um gritinho frouxo enquanto o esperto e lépido Frei, aproveitando-se do faniquito do escudeiro, simulou um desmaio que lhe valeu duas semanas de cama e uma batelada de exames. Doutor Peninha, consagrado na cidade como o curador, comunicou a todos que o Frei tivera um aneurisma inoperável e pelo tal não poderia exercer suas funções de pároco. A cidade orava dia e noite pelo Frei que só queria se ver livre de todos para dar seu costumeiro show para os santos que adornavam sua igreja, fiel e imóvel platéia.
O reconhecimento da graça do Frei palhaço veio no dia que Jesus lá de cima da cruz pediu bis. Foi a glória para Martinho, bisou cinco vezes e pacificou o espírito de palhaço frustrado substituindo-o pelo de palhaço do Senhor. Uma honra evangélica que o Frei jamais esqueceu, esse era seu alento diário, "Jesus é meu tiete". Agora, com a chegada do circo a festa seria real.
Enquanto tudo acontecia, Rita estava muito longe da algazarra. Tinha saído a cavalo para buscar uma novilha desgarrada, aliás montava como uma amazona, e não escutou a música do circo. Mas ao ver o arco-íris começou a se ocupar de seu ritual, dessa vez dançando sobre o dorso do cavalo, quase alado. Dona Eralda que sempre respeitou os desvarios ocasionais da moça, foi procurá-la onde a mesma reverenciava o arco-íris. Ficou chocada quando viu Rita dando saltos artísticos com equilíbrio absoluto em cima do animal trotando, que com ela formava uma dupla perfeita. Dona Eralda chamou-a, venha Rita, venha ver a novidade. Sentido-se ultrajada por ter sido interrompida no seu único momento de êxtase, Rita não respondeu a patroa, pela primeira vez.
Desconcertada pelo desrespeito Dona Eralda ameaçou-a, você será a única da cidade a não ver a chegada do circo. Ao ouvir a palavra circo Rita enrijeceu-se, era como se algo absolutamente inexplicável tivesse operado dentro de seu corpo endossado por um tremor da alma. Rita saltou do cavalo como fazem os equilibristas e já no chão perfeitamente de pé olhou para Dona Eralda com um daqueles olhares que ficam impressos para sempre no alvo. Assim ficou por uns minutos até que a patroa compadecida a envolveu com seus braços fortes e amparou a pobre moça. As pernas de Rita foram dobrando de mansinho até perderem toda a força jogando-a ao chão. Deitada e abraçada em si mesma Rita chorou. Dona Eralda, chocada com o inesperado espetáculo que acabara de assistir, de alguém que julgara de pedra, ajoelhou-se e perguntou, o que aconteceu minha filha? Entre dois riachos que corriam pelas curvas de seus lábios trêmulos, Rita olhou para aquela que um dia a acolheu e com austera voz de fiapo articulou um não sei não. Dona Eralda lembrar-se-ia para sempre daquele olhar irremediavelmente estilhaçado. Ela sabia que o subterrâneo da alma de Rita era impenetrável. Perante aquele coração sombrio, repleto de temores, Dona Eralda sentou-se escrupulosamente ao lado da leal empregada, abraçou-a fortemente e essa sem nem um cisco de resistência aninhou-se no colo da patroa. Ali ficaram imóveis até o sol esfriar e ir esquentar as antípodas.

domingo, 18 de outubro de 2009

O CIRCO I


Quando Rita chegou à Colina Velha todos os habitantes da pequena cidade prestaram atenção nela. A moça não tinha nada que a qualificasse ou a desqualificasse, ela era simplesmente estranha. Ninguém sabia de onde vinha, ou a que vinha. Ela chegou à noite e durante toda a madrugada ficou sentada no único banco da rodoviária, o vigia noturno não arredou dela seus olhos, ela não chegou a percebê-lo. Quando o dia começou a ensaiar seu nascimento Rita levantou-se e caminhou a passos curtos e lentos para a direita, caminhava sem destino. Por todos os lugares que passava as pessoas a olhavam e se entreolhavam buscando uma apresentação ou uma pequena saudação, essa ou a outra não vieram. Depois de uma longa caminhada chegou ao acaso em uma fazenda muito bem cuidada que ficava a quase 8 Km. da rodoviária. Ao lado da porteira estava sentada em um pequeno banco de madeira uma mulher já adentrada nos quarenta, de rosto suave porém forte. Sem que Rita lhe endereçasse os olhos Dona Eralda interpelou-a, está em busca de serviço moça? Com um leve movimento de cabeça Rita assentiu e passou indiferentemente pela porteira.
Desde esse dia passaram-se 15 anos. Rita que à época tinha 16 anos, trabalhou de sol a sol para Dona Eralda que sem jamais tê-la visto acolheu-a em sua casa.
Era uma família pequena onde a matriarca Eralda comportava-se como se tivesse sido ungida por Deus para imperar naquele lar sem concorrentes até a morte. Tinha três filhos homens, adultos e de boa aparência. Os três eram inteiramente submissos a ela. Na cidade de apenas 3000 habitantes, eram conhecidos por “as meninas de Eralda”. Essa pilhéria que corria também pelos arredores da pequena cidade, não arranhava em nada a boa relação da mãe dominadora com os filhos dominados. Muito pelo contrário, para eles era confortável que ela, sabidamente excelente administradora, cuidasse da fazenda extraindo-lhes a pena de pensar e trabalhar. A ela eles deviam tudo que tinham na vida além da própria vida, o único preço era a obediência, a qual pagavam com muito gosto.
Os primeiros meses de Rita na fazenda de Dona Eralda provocaram uma grande curiosidade nos habitantes da cidade. Rita não falava de si nem dos outros, respondia evasivamente às perguntas que os bisbilhoteiros lhe faziam, nunca namorou ou olhou particularmente para qualquer rapaz da cidade, ninguém jamais a procurou, seu sobrenome e origem jamais foram revelados. A vida de Rita era um mistério. Mas como a pátina do tempo a tudo alheia, Rita saiu privilegiada. Pouco demorou para que ninguém mais se importasse com ela, assim como ela nunca se importara com ninguém.
Rita era uma moça de estatura média, pele branquinha, cabelos pretos e longos, os olhos eram castanhos com um formato ligeiramente amendoado que só emprestavam vida ao seu rosto nas raras vezes que Rita sorriu nos quinze anos que ali viveu. O silêncio, a discrição, e a alienação a tudo que lhe rodeava só desapareciam quando após a chuva o sol o arco-íris fazer seu admirável desenho no céu. Nesses dias Rita dançava, cantava, corria em círculos pelo mato, pulava de pedra em pedra, subia e descia das árvores, balançava nos galhos mais altos das mangueiras e de lá saltava com a leveza e naturalidade de um pássaro.
A outra alteração no comportamento de Rita se dava uma vez ao ano, no dia 15 de abril, ela chegara à fazenda no dia 17 do mesmo mês. Nesse dia Rita levantava-se mais cedo que o costume, e se dirigia de cabeça baixa a um jardim só de árvores de jasmim, que ela plantara perto do paiol, na parte mais alta da fazenda. Certa noite enluarada o jardim de Rita exalou um perfume tão forte que ela o considerou como portador de presságios. Essa impressão lhe bateu tão forte que ela dedicou aos movimentos celestes uma noite inteira de contemplação, talvez estivesse à espera de algum sinal do Alto. Essas eram as únicas duas demonstrações da existência de Rita, afora seus afazeres domésticos cumpridos impecavelmente, sem queixa ou esquecimento. Rita era uma moça estranha e essa imagem ela impôs em Colina velha.
Os filhos de Dona Eralda amavam a dedicada empregada sem que ela jamais tivesse lhes dirigido uma única palavra. Quando levantavam pela manhã, o café já estava à mesa com os agrados favoritos de cada um, quando saiam as roupas estavam limpas e passadas, quando iam dormir a cama estava preparada e o pijama dobrado sob o travesseiro afofado como para melhor afagar seus sonhos. O mesmo zelo Rita dedicava à Dona Eralda, esta sempre atenta à estabilidade do comportamento de sua mais fiel ajudante. A única vez que a patroa adoeceu, Rita entristeceu como se estivesse experimentando uma possível orfandade. Demonstrou seu sentimento passando todas as noites sentada no chão ao lado da doente até o restabelecimento da mesma. Dona Eralda jura que durante a noite ouvia um suave murmúrio emitido através do silêncio de Rita. Afirmava a enferma, que podia identificar solfejos de diferentes canções de ninar e talvez um umedecimento nos olhos de Rita. Podia também ser apenas uma impressão.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Ser transparente: é possível


Em uma outra postagem falei da boa prática de nunca se mostrar por inteiro. Fui mal interpretada. Não se mostrar por inteiro significa apenas nunca desguardar os flancos, assim jamais será surpreendido pelos intrusivos que te interpretarão calcados na sordidez da própria vida. Aliemo-nos à sensatez, uma certa discrição e um certo silêncio, sobretudo sobre estórias da própria vida que não dizem respeito a ninguém, só conspirarão a nosso favor. Há pessoas, principalmente aquelas que têm a cidade psíquica comprometida com a pequenez, que se sentem livres para fazer revelações da vida pretérita que até a pátina do tempo já se desfez. Esses momentos epifânicos podem ser devastadores, cuidado! Quando vejo alguém entrar nessa aventura temerária, meus pensamentos empalidecem perante tão ordinário mortal.

No entanto, a transparência é virtude dos grandes. A água, exemplo sublime da transparência, também pode se tornar turva se a usamos mal, se a remexermos muito ela mostrará seu lado negro. Afinal o que é ser transparente? Ser transparente é ser maiúsculo, é ser verdadeiro, é ser leal, é a inclandestinidade de atitudes, é ser forte, é não ter medo do nada, é estar em harmonia com o Bem e sintonizado com a coragem do verdadeiro herói.

A esses reverencio, para esses os deuses trabalham e bem.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A Fragilidade do Bem





Sabem, os que me conhecem, a forma que lido com as pessoas. Sabem também como oriento os meus amigos, quando solicitada, a melhor forma de lidar com os amores. Aqueles que perderam algum amor, não queiram entender os deuses, nem seus sortilégios. Entendam apenas que aqueles que morrem jovens no coração da gente, ficam eternamente jovens nesse mesmo coração. É o significado humano do sentimento e das sensações.

Para fazer justiça ao título, não irei pelo viés filosófico, falarei no popular: cuidado ao fazer o Bem. Talvez seja a indiferença à sorte do outro a melhor maneira de viver,quando se faz o Bem, só o reconhecem as pessoas do Bem e elas são poucas. Livrem-se de tudo que os levem a recordar ou despertar essa serpente malígna que guardamos um dia com afeto e metafóricamente a guardamos no fundo da gaveta da alma, livrem-se do lugar da memória: o retrato. As fotografias não te lembrarão dos momentos felizes e sim da traição, não a traição das pessoas, mas a traição do tempo que ficamos aprisionados por nada.