quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Meu único delito Vingança I



Venha, descerei meu corpo sobre o seu como nunca o fiz antes. Não diga palavras de amor, não gosto de ouvi-las, já as conheço. Quero apenas te mostrar o quanto posso te ser útil. Tirarei sua roupa, peça por peça, passarei a língua em todas as partes de seu corpo como se não existisse o amanhã. Você ficará imóvel, hoje quem comandará o espetáculo serei eu. Venha.

Ele foi. Entrou poderoso pela porta pensando, as mulheres sempre cedem, estava certo. Ela o esperava hirta de desejo. Com o coração em corrida o abraçou e o beijou apaixonadamente. Na sala coberta de tapetes empoeirados ela o jogou ao chão e cumpriu a promessa. Seu corpo esguio, pronto para o deslizamento, percorreu o corpo dele, cada centímetro foi delicadamente violado.

Imóvel ele não sabia se chorava ou ria de prazer. As mulheres sempre cedem, continuava pensando, sonhando. A dado momento ele abriu os olhos em orgasmo e falou, morri. Ela respondeu sorrindo, sim morreu.

Quando o sangue começou a tingir o tapete ela levantou, foi à eletrola, colocou Wagner, cuspiu sobre o cadáver e pensou: meu único delito foi nascer judia, seu único delito foi escolher ser nazi. Em estado de graça ela foi fazer outra ligação. "Venha"....

Alemanha,dezembro de 1945.

A vingança pode ser feita de várias formas, é só escolher.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Auto-estima: um tema em questão

Um dos temas mais frequentes abordados pelos pacientes nas sessões de psicanálise é a maldita auto-estima. Criaturas fantásticas em todos os sentidos sofrem desesperadamente por não acreditarem em si, por se sentirem eternos perdedores, por substimarem à própria capacidade de pensar, por se sentirem mal amados, desprezados, não reconhecidos, um caos emocional. Diagnosticado o problema, o psicanalista percorre um longo calvário para elevar a auto-estima do condenado ao suplício do auto-desprezo. Esse é um sentimento atávico que o homem carrega desde sua origem, difícil de ser superado.

Não obstante a via crucis daqueles que padecem desse mal, se creem em Deus, deveriam agradecer de joelhos. A baixa auto-estima é a grande dádiva divina para o homem se proteger de si mesmo.

Quem já conviveu com portadores de auto-estima nos pícaros da lua? Dá pena, não? São esses elementos os grandes colecionadores do detestável "pagar mico". Perdem inteiramente a auto-crítica e o senso do ridículo. Em geral sofrem de incontinência verbal ao grau máximo, são idólatras de si mesmos, a subjetividade é a fronteira inabalável de sua existência, cantam aos quatro pontos cardeais suas proezas e conquistas, se veem belos e irresistíveis, confundem a ordem do público com a ordem do privado, são amados incondicionalmente por todos, emitem opiniões brilhantíssimas e irrefutáveis, são invulneráveis às desditas da vida. Um assombro!

O fato é que a sorte de ter uma "invejável" auto-estima, não descarta a ação de uma força poderosa que conspira permanentemente contra essas criaturas, a vaidade. Esses seres incautos pavimentam seu destino na estrada da oligofrênia e por isso mesmo não se dão conta que são o objeto do escárnio e da pilhéria pública. Não se pode perder de vista que existem dois mundos, o visível e seu contrário. Esse último, o invisível, é o real, o outro é pura representação. Nós não temos o controle sobre o OUTRO e nesse caso não há lugar para polêmica e não é um sofisma. É a arrogância dilatada ao extremo, que leva certas pessoas à exposição pública desempenhando um papel triste com maestria vida afora.

Quem te garante que seu filho encantador não seja um traficante empedernido? Que seu aluno cordato, com ares de admiração, te considere um mestre? Que sua empregada há 20 anos não te roube um pouco a cada dia? Que as declarações de amor são a expressão de um sentimento verdadeiro? Que os elogios não sejam meras palavras? Que seu namorado só o é a sua frente? Que seu pai seja o machão que se apresenta? Que na virada da esquina aquele que estava sob seus olhos, seja a mesma pessoa? Que enquanto você agoniza, alguém comemore?

A certeza sobre o OUTRO só a tem aqueles que não saem da jurisdição de si próprio e acabam caindo na órbita do riso do OUTRO ou dos OUTROS o que é bem pior. Mas ainda assim saem ganhando, porque a estupidez e a cegueira são irmãs siamesas.

Cuidado com a pegadinha. As manifestações de uma alta auto-estima podem ser uma farsa para escamotear uma auto-estima zerada. Não tem saída, para qualquer lado que se ande a indiosincrasia de cada indivíduo garante sua singularidade. Mais uma vez, nem sempre o que se vê se é.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Dê-me um dia, que seja o dia de Natal

Hoje vou falar dos homens comuns em um dia extraordinário: o dia de Natal. A idéia pode ser um tanto delirante até insignificante para alguns, mas mesmo na recusa sectária dos que nada creem, o dia de Natal não é um dia comum, nem para os homens extraordinários. Por isso, sobre Lou Andreas-Salomé, mulher que fez da vida sua grande paixão, Freud escreveu: “Você tem um olhar como se fosse Natal”. Assim, com essa sensível comparação metafórica Freud agradeceu a Deus, no reconhecimento de sua existência, a via luminosa que o permitiu devassar o mundo do inconsciente. Ao homenagear Lou Salomé, Freud se curvou perante o ópio da fé.

Não vou pensar no universo religioso e sua magia, limitar-me-ei ao significado do dia de Natal e seu ritual terapêutico nas almas dos homens do mundo Ocidental. É patente a profunda influência do dia 25 de dezembro no calendário onírico das pessoas. O tempo que o precede pode ser curto ou longo, coletivo ou solitário, triste ou alegre, mas nunca é um tempo indiferente. Esse é o tempo que dedicamos às incursões na memória. São reminiscências longínquas, perdidas, mas que ocupam um lugar único no espaço nobre do coração. É a saudade, maior punição do homem, de um outro ou de outros Natais evocados para dar um alento à alma e perpetuar por instantes o que pode ter sido apenas um glorioso acaso. É a “Noite Feliz” que nos reporta às nuanças de momentos tão particulares, que o primeiro acorde atualiza o tempo. Sentimentos adormecidos durante 364 dias de súbito tomam o vulto assustador de realidade. São os presentes. Nada no mundo se assemelha à beleza do ato de presentear, de materializar simbolicamente um sentimento, uma deferência do espírito e o privilégio de estar dentro de algum coração no momento da escolha. Como são queridos os presentes. Só um ramo de mirra, é o bastante. São as árvores iluminadas, as luzes que se acendem desesperadamente para se sobreporem a qualquer sombra que por ventura ameace a transparência do Dia. É a festa, as delícias, os néctares, os risos, os abraços, as surpresas, as chegadas inesperadas, a felicidade sem fim.

É tudo ou nada. Para a maioria é nada. Esse é o outro lado da moeda, o que prevalece no mundo dos homens, e aí, sem distinção de pontos cardeais, aqui e alhures é o lado real...nada. Não existe Natal nem no sonho, nem na fantasia. Não se sonha com o desconhecido. As festas, iguarias, néctares, etc... são inimagináveis. Presentes? Há milhares de mãos esfarrapadas estendidas pelo mundo afora que não encontram nada que as façam sentir merecedoras da própria vida, que dirá de um presente. Visitas à memória? Melhor adiar. Buscar o quê na esterilidade do passado? Luzes?
Essa história de “Feliz Natal” é um vício de linguagem. Falácia do mundo das palavras. Quem conhece minimamente a história, só tem lugar para tristezas no coração sempre em choque com a animação do espírito. A efemeridade do agora, intervalo entre as angústias do passado e falta de perspectivas para o que será, não permite vida longa à felicidade. Quem pode ter um dia feliz depois da retirada de milhares de pessoas sob a mira da morte em Kosovo? Isso foi ontem, um simples exemplo perto de outras barbaridades manifestadas pela natureza humana. Como desejar um “Feliz Natal”, ao dia seguinte, que não aparente cínico a alguém que traz na alma golpes mortais instalados na véspera? Eu diria que não há como viver o Natal os homens de consciência delicada, marcados pelo vivido como uma tormenta em alto-mar. Não há mais mãos para segurar esse leme. É na indiferença do homem à sorte do outro, sintetizada na aviltante dupla “problema seu” e “eu não posso fazer nada”, a razão da história do homem estar imersa em um profundo mar de lágrimas.
Mas, que ironia...o universo das representações não sucumbe, não se curva perante os desvarios da humanidade. Hiroshima transformou-se em meu amor. Vão aparecer sapatinhos em algumas janelas, tem Papai Noel confirmando a alegoria do Natal em toda parte, Lennon continuará cantando que a guerra acabou. Feliz Natal...é a ordem do dia.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Dor que mata: a injustiça



Há 30 anos dando aulas, há 30 anos estudando a história da América Colonial, do Peronismo e da Guerra Civil Espanhola. Injustiça. A história é a história da injustiça do homem. Trago a alma exaurida dessas leituras depressivas que reiteram a minha concepção negativa da humanidade. Quanta guerra, quanta morte, quanto ódio, quanta injustiça. É a marca humana que comporta paradoxos como guerra e paz, amor e ódio e o pecado e o perdão. Por paixão política e fidelidade à ideologias de direita e também de esquerda os homens cometem ignomínias desprezíveis que inequivocadamente, a pátina do tempo as transforma em história. O holocausto virou história, tema batido, ouvi isso há pouco tempo.

No final do semestre letivo tenho a mente povoada de escravos torturados, de índios desgraçados, de padres mais ligados à matéria que ao espírito (há exceções notáveis), de discursos e práticas políticas que se incompatibilizam, de Inquisição, de fascistas, de assassinatos de guerra, de ditaduras hediondas, de crimes em nome da tradição cristã e isso é só para começar. Aulas, simplesmente aulas, sem emoção, sem ódio, sem paixão. Aulas inodoras, anódinas.

Meu maior prazer: a inversão. Não obstante o escopo e intensidade da injustiça ela não passa desapercebida, não tem um fim em si mesma. O poder aparentemente concentrado nas mãos de alguns é a grande falácia histórica. Os homens vingam e essa vingança que aparece nas inversão do papéis não é má, é imprescindível para se acreditar que não está tudo perdido. É a vingança silenciosa do escravo que quebra todos os brotos da cana recém-plantada, é o índio oferecendo sacrifícios veladamente aos seus deuses, é Tarantino na história/ficção em Bastardos Inglórios, é Dogville, é o ladrão roubado, o perseguidor perseguido, o assassino torturado, enfim o momento do êxtase maior, a virada do jogo. É não esquecer, mas se esquecer, não perdoar e se perdoar, não reconciliar. A injustiça inspirou Castro Alves: "Colombo! Fecha a porta de seus mares!". Ah se fosse possível reverter o tempo e impedir que feras viessem ao mundo em forma de homens.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

E não se sabia de nada: elogio à ignorância





Abençoados sejam os ignorantes,a eles está assegurada a felicidade na terra. Será isso uma verdade? Acho que sim. É a dádiva de não saber, de nada conhecer, de não ser alfabetizado, de viver para sobreviver, de não prever o óbvio, de não saber que não sabe, de não compreender às palavras, de não perceber às ironias, de rir onde deveria chorar, de não ter auto-crítica, de jamais ter ouvido falar em auto-estima, de não se dar conta do desrespeito do outro, de ser mal informado sobre tudo, de passar pelo mundo na cegueira absoluta, de não ter domicílio fixo e ser como dizia Da Vinci "um simples condutor de alimentos".

A ignorância é como a pátria, aliás é a própria pátria. Ela garante a liberdade, a liberdade de viver sem saber de nada. O ignorante teve o prêmio de ser liberado de sua condição intelectual e é nessa fortuna que desenvolveu sua virtude maior, a de não perceber a si próprio. Essa é a sutileza da graça divina, ser salvo da danação pela protetora maior: a Santa Ignorância.


Não foi por nada que em uma carta à Mlle. Leroyer de Chantepie em setembro de 1858 Flaubert escreveu sublimemente: "O único meio de suportar a existência é despojar-se na literatura como numa orgia perpétua."