sexta-feira, 23 de julho de 2010

ENCRUZILHADA: A PALAVRA PROIBIDA












Quando eu ainda não tinha acesso aos dicionários e nem coragem de perguntar aos meus pais o significado de todas as palavras e palavrotas que ouvia, havia uma que me perseguia, que me feria os ouvidos: encruzilhada. Eu não sei se era o som, o momento que era proferida, sempre emitida por bocas tensas, se sentia medo do seu possível significado ou se a associava com a bifurcação danação/salvação, não sei. Para me defender da maldição da palavra, resolvi que não a repetiria jamais e essa seria daquelas palavras a ser referida como a "proibida". Pois bem, essa macabra combinação de sílabas ficou gravada de forma indelével no meu inconsciente como sinônimo do mal, do mal absoluto.

Hoje eu sei o significado da "palavra" e confesso, continuo a temê-la e ao temor ainda agreguei o ódio. Decididamente eu não convivo em harmonia com a "proibida" e não sei como livrar-me dela. A cada dia amanheço diante de uma "proibida" que bifurca, trifurca e quatrifurca, isso quando não polifurca. A vida é uma proibida. Não sei se vou ou fico onde estou. Ficar significa uma resistência ao novo, ao desafio e até mesmo a uma possível felicidade maior. Ir é o inverso. Vou, tenho que ir. Em diversas situações de confronto com a "palavra", fui e em 100% das vezes que fui, me dei bem. Nesse aspecto temos que seguir o poeta, não sabemos qual estrada tomar, mas há de tomá-la.

Decisão certa ou errada é uma questão para depois. Ah, importante é saber que ficar também é uma decisão.


O CAMINHO NÃO PERCORRIDO

Robert Frost

Num bosque de folhas amareladas
Dois caminhos havia e eu não podia
Ser dos dois caminhante
Fiquei ali a concentrar me num deles
Olhando fixamente até perdê-lo de vista
Nesta curva da folhagem distante

Mas foi pelo outro que fui
Igualmente bom, até certo ponto talvez melhor
Porque cheio de erva e a pedir que o usassem
Embora quem por ele passava
Ainda mais usado se sentisse

Tanto um como outro ali estavam
De folhas no chão que nenhum pé escurecera
Oh, deixei o primeiro para outro dia
Mas sabendo como um caminho a outro leva
Duvido que lá possa voltar um dia

Isso direi com um suspiro na alma
No tempo que durar a minha vida
Havia nesse bosque dois caminhos e eu
Eu fui pelo menos utilizado
E aí reside toda a diferença

A MUDANÇA: A ANTÍPODA DA ELEGÂNCIA




A mudança desafia qualquer pretensão à elegância, ela é humilhante, ela nos desnuda para os velhos e para os novos vizinhos, a mudança é a própria vida na praça. Defendo a idéia de que morar em um determinado lugar deveria ser igual "casamento", para sempre, mesmo porque é uma questão de gratidão, por um lado e de predestinação por outro. Os mutantes são sempre ingratos com o passado, ainda mais se para uma região melhor, nem os nomes dos antigos vizinhos são mencionados depois da mudança. Tristes reminiscências do tempo de pobreza. Aliás, essa coisa de mudar para um apartamento de localização nobre, iluminado, com dois amplos salões, sala de jantar e de almoço também, com 4 quartos (todos com suite: privadas exclusivas), dependência completa para os empregados (as incompletas não têm o quarto), com playground, salão de festas, sala de jogos, piscina, campo de peteca, garagista, alarmes, circuito de televisão interna e externa, porteiro 24 horas é o sonho de alguns, para outros o pesadelo. Nada mexe mais com a vaidade de certas pessoas como poder morar bem. Essa coisa de querer melhorar de vida com casa nova é uma enfermidade da alma. Seria fantástico se na mudança as pessoas se deixassem na casa velha. Mas, pelo contrário, levam para a casa nova o espírito velho e imutável.


Mas falemos da mudança em si. Perfeito seria se o caminhão "adeus cortiço" pudesse parar na janela e sugar tudo de dentro do detestável cuchichó que foi a razão de tanto sofrimento familiar, parar na janela do sonhado éden e enfiar tudo prá dentro, sem testemunhas. Infelizmente, não há como manter um caminhão no ar defronte da janela do décimo andar, êle cai. Por isso rogamos a Deus que a engenharia moderna se sensibilizem e faça alguma coisa para nos proteger dos olhos alheios nossas tralhas que guardamos com tanta devoção. "Minhas coisas", "minha louça", "minhas panelas", "meu sofá", "meus retratos" (a morte documentada), "minhas reproduções de Dalí", "meus tabuleiros", "meu tudo", "minha história". Essa é outra irreverência do vernáculo mal manejado. Desconheço algo mais antipático do que a frase "isso tem história", ou então aquele lugar comum dos desquitados arrependidos, "tive história com o/a fulana". História sim, mas prá ser esquecida, enterrada e coberta com cal. Nesse ponto nada mais sensato do que entender que a história da gente pode ser a anti-história do outro, então é melhor parar com esse chavãozinho besta de "minha história". O melhor é adotar definitivamente e sem lástima a máxima "o que passou, passou". Quanto os objetos de estimação, isso é lixo e o lixo é o lugar certo para elas. Conheço gente que guarda bilhetinho de colega do pré-primário e trevo de 4 folhas (sequinho) dado pelo primeiro namorado que já deu óbito há 30 anos. Doença.

Qunto à mudança, as desavenças familiares começam quando o dia do transtôrno é marcado. O que vamos levar no carro, o que vai no caminhão, quais roupas levar, a comida da geladeira, as coisas semi-usadas de cozinha e limpeza? Jogar fora, nem pensar, a casa nova vai nos deixar na penúria, na ruína, na miséria por pelo menos uma década, rosna o pai. Ah, também não importa, muxoxea a mãe, a portaria é tão linda, tem até espelho prá gente brincar de tomar susto quando olha prá êle. Os vizinhos são chiquérrimos, cada carro de matar na garagem, afora os motoristas, todos uniformizados, lindos. E as empregadas domésticas, elegantérrimas, meias três quartos, frufru na cabeça, curso superior, uma riqueza! Isso que é vida, observa a "do lar", toda eufórica.

Véspera da mudança, toda a família de guiné pelo corpo afora, a inveja vai comer solta. A execrável pobreza, vizinhança cafona, não suportará o abandono da família que superou imobilidade social. Se alguém perguntar se os móveis vão para o apartamento novo, respondam que não, vão ser doados a uma creche de velhinhos, ordena a mãe furiosa com a impossibilidade de comprar qualquer ítem para a casa nova. Além disso, não quero que o novo endereço seja dado prá nínguem aqui do bairro. Vamos romper definitivamente com essa gentalha, a começar fechando a caderneta de compras na mercearia. E ainda chamam aquele muquifo de mercearia.

Mudança de gente fina começa à meia noite, vizinhança faladeira desmaiada de tanto trabalhar, vizinhança de classe adormecida sobre macios lençóis egípcios. Quanta fantasia! Começa o transtôrno. O melhor é levar algumas coisa antes porque os homens da mudança não têm cuidado com as peças de valor...de estimação. Resolve-se alugar a Kombi que serve a todos do bairro. Mãe, choraminga a adolescente, minhas roupas eu levo na Kombi, sim filhinha, coloque-as na mala meu bem, ah não, vai amassar tudo, melhor levá-las penduradas, onde diaba, ah no cabo do rodo, imagine, e a vizinhança? Nínguem vai ver, já são duas da manhã. Tudo bem, lá se vão roupinhas de pouca marca pendurados em cabides de lavanderia no cabo do rodo que já perdeu a borracha, um vexame, mas o rodo é lembrança do chá de panela da mamãe, êle vai. Depois de encher a Kombi até o talo, a bicha sai desenfreada com os pneus quase arreados para levar o máximo de coisas para o paraíso. Anda depressa, recomenda a mãe, levem a Sebastiana com voces, saiam e entrem pelo elevador de serviço, nada de chamar atenção. Elevador espelhad, lotadinho de caixas de papelão em estado precário, entra um vizinho, lindo, chegando de uma festa, de smoking e cabelos de gumex. A jovem passa pela primeira humilhação. O pão, rapaz de boa cêpa, cumprimenta e pergunta, estão mudando, querem uma mãozinha? A pobrezinha, sem voz, olha fixamente para a escova de cabelo cabeluda que desavisadamente ficou esquecida por cima de uma caixa de sapatos lotadinha de vidros com um dedo de xampu, dentifrício no final com a tampa engastalhada, sabonete todo ressecado formando sulcos profundos, batons derretidos, lápis de olho no tôco, vidro de acetona vazio, 6 cotonetes amarrados com gominha, um desastre. Quer ajuda, insiste o príncipe, não, nosso motorista já vem, responde a jovem ofendida.

Por aí vai, até que às seis da manhã a exaustão já tomou conta de todos, o caminhão parado com os homens da mudança aos berros, segura aí pôrra, que isso, é a cabeceira da cama, cadê o pé, são dois catálogos de telefone e quatro livros. A vizinhança classe A na janela horrorizada, pasmada, ameaçada, chocada, os recém-chegados, extenuados, entregam os pontos. Chega de pose. O dono da casa, histérico, desfila trôpego pela garagem agarrado num xaxim cheio de terra sêca, com a calça inteiramente enfiada no rêgo profundo o que lhe provocava movimentos rotativos estranhos com as pernas causados pela ânsia de se livrar daquela intrusão na racha. A mãe de sandálias havaianas (perdeu a unha do dedão numa topada no canto do tanque), meio mancando, implora silêncio e reverencia os vizinhos apatetados, com a subserviência e humildade que lhe faltaram na casa velha, a coitada carregava com toda a fineza que lhe restava uma bailarina falsa com dois olhinhos vesgos, tipo loja R$1,99, nos ombros uma bolsa Gucci (comprada em China Town, New York, Soletour, todos de sacolinhas iguais, viagem inesquecível) A empregada de short e barriga de fora abraçada nas roupas que estavam para passar e nos ombros o papagaio Betão com a cabeça pendendo prá frente, uns acharam que estava morto outros que era de mentira, mas a verdade foi que o cansaço se apossou da ave, agora prostrada e afônica, o filho pequeno chorando, nariz escorrendo e um travesseiro manchado sem fronha na mão, o filho do meio, doidão, com o cabelo a la rastafari, torrando o pai porque a êle coube levar a enceradeira e um poster do Guevara, a adolescente aos prantos, nunca mais saio de casa, jurava, perdi minha única esperança de casar com um aristocrata.

Quando o relógio marcou oito da manhã, o prédio chiquérrimo já tinha sido invadido pelos emergentes ensandecidos. O chofer da Kombi, Zé Trambique, quebra galho do bairro deixado prá trás, estava sem camisa, o umbigo, 10cm. de diâmetro, completamente à vista. Sem a menor parcimônia falou arrastando a palavra molhada de pinga: ô dona Geralda libera aí uma sacola prá eu colocar esses cacarecos da senhora, tô morto. A sem sacola no auge do desvarío, sentindo fisgadas lascinantes na batata da perna direita, o dedão contundido sangrando, deu um olhar macabro para o infeliz, achegou-se bem ao pé de seus ouvidos e disparou: vai caçar sacola na puta que te pariu. Com os olhos chispando fogo voltou-se para a vizinhaça boquiaberta e uivou: ôces vão junto cachorrada curiosa. Quanto à bailarina, seu último salto mortal foi na cabeça do porteiro de libré. Esse último, gay assumido, deu um suspiro e saiu do prumo. A mudança tinha acabado. No chão jazia um saco de pão e uma mantegueira com um restinho de manteiga. Ninguém da família teve coragem de buscar o café da manhã.