terça-feira, 16 de novembro de 2010

VINGANÇA A PRIORI




Há mulheres que naturalmente têm classe e glamour, são poucas. Trazem esse dom no nascimento, invejável. Elas são a expressão do fino trato, da delicadeza de espírito, do sorriso na hora certa, da voz doce e suave, das boas maneiras em todos os lugares e sentidos. No entanto, isso não lhes garante privilégios na vida, o lugar privilegiado que ocupam é o da memória, da lembrança inesquecível, da referência do charme, de serem invocadas quando as vulgares entram em cena.

Essas mulheres têm uma particularidade muito especial. Mesmo sem se progamarem para tal, elas se vingam "a priori" das vicissitudes da vida. Elas deixam sua marca indelével por onde passam, deixam saudades ainda que preteridas, são o exemplo citado da elegância do comportamento quando, reiterando, o torpe e o grosseiro pedem passagem.

Ser uma dessas mulheres é uma dádiva do divino. Quem não tem encantos inesquecíveis pela própria natureza, deve construir dentro de si estratégias comportamentais para entrar nessa abençoada tribo.

Vamos convir que é uma vingança e tal deixar de ser a rainha, mas não perder jamais a majestade. Para poucas.

sábado, 13 de novembro de 2010

DÁ-SE




Lá ia eu toda cheia de alegria no coração, andando pelas ruas da cidade, quando deparei-me com uma placa defronte a uma casa escrita: dá-se. Aquilo pareceu-me inusitado, jamais havia visto algo assim. Aluga-se, vende-se, isso está prá toda parte, mas dá-se? Tinha que ver isso de perto afinal, não era uma casinha qualquer, era uma casa linda, grande, no alto de uma pequena colina gramada com pequenos jardins coloridos salpicando o verde escuro da grama, manchado de inúmeros outros tons de verde. Parei o carro, desci calmamente e fiquei por uns minutos admirando aquele primor. Pensei, será que estão dando essa casa? Claro que não, estou vendo coisas.

Eis que senão quando uma senhora abriu a porta, desceu pela pequena colina e muito delicadamente perguntou-me se eu queria visitar a casa. Atônita pensei, morri e não me dei conta, isso não podia ser do mundo dos homens, mas era. Entrei meio amedrontada, mas já tendo pouco a perder, encarei o insólito. Não que eu goste de surpresinhas, nem curiosa sou, mas segui a senhora que andava tão levemente que tive a nítida impressão de ser uma alma do outro mundo.

Quando entrei na casa fiquei maravilhada, era tão linda, tão linda que igual eu nunca vi. Perguntei a ela se a placa estava errada, indignada ela apenas me olhou com um ar de espanto. Essa casa está para ser dada a quem quiser, você a quer? Já sofrendo de nanismo na voz balbuciei, a senhora vai me dar essa casa? Sim, respondeu a boa alma e sorriu. Conformada por estar travando uma amizade com seres do Além, entrei no jogo. Quero. Definitivamente eu queria aquela casa. Calmamente a senhora entregou-me as chaves e levou-me para conhecer o resto da casa. Aquilo era a materialização da imagem onírica do belo. Indescritível. Nesse momento, com as chaves apertadinhas dentro de minhas mãos proprietárias, ofereci como cortesia aos psicanalistas esse meu ato de insanidade. Aceitei a casa.

Depois das devidas apresentações dos espaços da casa, a Alma dirigiu-se ao portão de entrada enquanto e me informava como deveria cuidar da casa e dos jardins. Fiquei um pouco aflita imaginando como eu poderia manter aquilo tudo, mas atrevida que sou pensei, dou um jeito. Quando ela atravessou a rua à guisa de partir e deixar-me com uma casa no alto da colina, com jardim verde e colorido, apavorei. Senhora, gritei, isso não é uma brincadeira,é? A senhora acha que vou aceitar uma casa dessas de uma pessoa que não sei quem é, assim como a senhora não sabe quem sou? Com um olhar de comiseração pela minha insegurança frente ao "fora do comum", ela falou: "a casa é sua minha filha (não gostei, mãe eu já tenho), a única condição que imponho e que já ia me esquecendo é que você terá que desfrutar da casa sem contar para absolutamente ninguém. A cada tres dias virá uma pessoa para que você lhe dê a lista do supermercado e o que mais precisar. O silêncio é a única condição para a casa ser sua, em um ano eu voltarei para saber como anda". Virou-se e foi embora.

Um ano depois...

Minha vida transformou-se, foram os melhores 365 dias de toda a minha vida. Na minha casa eu era plenamente feliz, vivi plenamente sem a interferência de qualquer pessoa, todos os dias foram rigorosamente comandados por mim. Uma semana depois do primeiro ano, aquela senhora apareceu numa tardinha. Cumprimentou-me pelo esmêro que a casa foi mantida e sobretudo pelo meu silêncio, até então nem aos amigos mais chegados eu mencionara aquele sonho que estava vivendo, na mais linda casa no alto da colina. E assim continuei por mais alguns meses, quando amaldiçoadamente contei a uma pessoa de extrema confiança o que estava acontecendo comigo. Essa pessoa não conseguiu guardar o segredo e comentou com outra e essa com outra e mais outra, até que a metade da cidade sabia da estória.

Começou o meu calvário. As perguntas e insinuações a respeito da "casa dada" foram as mais criativas possíveis. Até no narco-tráfico fui acusa de estar envolvida. Talvez um amante bem velho, uma maracutaia a ser descoberta, desvio de dinheiro público, qualquer coisa menos "uma casa dada". isso sem contar os risinhos perversos nas horas perdidas em especulação sobre o real dono da casa. Bem, perdi a casa, depois de romper voluntaria e estupidamente o pacto com a senhora. Uma alma? Não sei.

Quem porventura ler essa estória saiba que não é uma ficção. Aconteceu comigo. A casa está no mesmo lugar com a placa "dá-se". Fiquei sabendo de duas coisas, a primeira é que essa casa vem sendo dada e tomada de ano em ano. A segunda é que assim como o átomo, a felicidade é indivisível. Tem uma terceira que aprendi, todas as vezes que julgamos alguém, inevitavelmente erramos. Eu também errei, julguei a senhora e me esqueci da marca humana. Imperdoável.

Acredite se quiser!