domingo, 19 de dezembro de 2010

O HÓSPEDE




Quase todo mundo já foi hóspede de alguém, quase todo mundo já anfitrionou alguém. A relação hóspede/anfitrião, em geral, resulta na inevitável desmistificação do outro. É a devassa mútua. O hóspede vê coisas incontáveis, o anfitrião também. Ambos são vítimas do olhar do outro, da observação velada, das falsas gentilezas e quiçá da antipatia eterna.

O hóspede é um ingrato por natureza, ele vai, ele precisa ir para a casa do outro, mas sente ódio. É ódio de quem não lhe fez nenhum mal. As razões? Várias, entre elas a impossibilidade de pagar um hotel e prescindir de favores. O ódio é de si mesmo, que ele, impiedosamente, projeta no anfitrião. Por outro lado, ele cria para si a patologia da exceção. Mesmo sendo consciente dos problemas inerentes à hospedagem, o hóspede se julga diferente de outros hóspedes. Ele desenvolve a retórica da auto-defesa para negar sua imprudência. Ele é discreto, passa como um fantasma, ninguém percebe sua presença. Já ouvi coisas da seguinte ordem:"todo mundo me quer como hóspede, entro e saio sem deixar vestígios". Que presunção!

O fato é que tudo está na mais perfeita ordem quando toca o telefone: "posso passar uns dias aí? não se preocupe comigo, não te ocuparei, continue sua vida normal". Essa vozinha demoníaca soa como um tiro na cabeça da vítima. Em geral, vem com a pergunta, tá sol? Vem mesmo, diz o suposto anfitrião. Que alegria!!! Mentira soberana. Ele já sabe que está fadado a sofrer de desordem mental, a ter gastos inesperados, a encarar o ódio da empregada doméstica (quando há), à antipatia do filho que vai ceder a cama (quando não há quarto de hóspede, que ironia), a enfrentar ira do cachorro que passa a mijar pelos cantos da casa, a lidar com a cara de cão do marido (essa aparição de novo?), é o caos anunciado.

Na chegada a representação de ambos é perfeita. São abraços, beijos, alegria, presentes (um queijo), as novidades. Tudo isso se resolve em meia hora. A partir daí começa a contagem regressiva para a sublime despedida. A dobradinha hóspede/anfitrião não funciona. Entre os dois há um fosso abissal, intransponível. Hóspede quer dormir, filho do anfitrião quer ouvir pagode, hóspede demora no banho, anfitrião pensa na conta de energia elétrica, hóspede pendura no telefone, anfitrião surta, hóspede come adoidado, anfitrião pensa em envenená-lo, hóspede intromete nas discussões domésticas, anfitrião implora aos filhos respeito, hóspede levanta as tampas das panelas, anfitrião baba de antipatia, hóspede atende ao telefone de cobradores, anfitrião se explica, hóspede descobre segredos, anfitrião jura vingança. E vinga

Na primeira ausência do hóspede, o anfitrião chama os familiares ao telefone e relata o infortúnio, o castigo, a presença do Anjo da Morte em sua casa. Comenta todos os deslizes do hóspede, que vão da hora que levanta com sua "roupinha ordinária", a hora que deita esquecendo uma escova de dente arreganhada no banheiro. Conclama os 'chegados' a tramarem um plano para se ver livre da figura nefasta ( isso até com um grande amigo de outrora), pensa em assassinato, uma simulação de assalto, sustinhos sobrenaturais. Ou até o plano simpatia, promovendo passeios intermináveis sob o sol de canícula ou visitas a museus particulares. Tudo é válido para extenuar o intruso. Outra técnica boa para colocar o hóspede na rua é relembrar coisas horríveis de sua vida particular, melhor ainda se for a hora do jantar. "E aí? sua mãe ainda gosta de umas biritas? e aquele seu primo drag queen, fazendo sucesso? olho para você e me lembro quando seu marido te largou por outra, ainda estão juntos? têm filhos? E você continua com seu tratamento contra furúnculos nas nádegas? ops...desculpe-me Queridinha, não queria te relembrar coisas tristes". Ai, ai...

Não tem jeito. O hóspede, aparentemente, não se toca, ele tem interesses maiores, não pode se levar por bobagens. Enquanto isso, macabramente, armazena a ira que ao longo da estadia é municionada barbaramente. Basta colocar os pés fora da casa que o recebeu para jogar pedras. "Que casa maldita, que filharada horrorosa, essa idiota mora na região mais feia da cidade, comida ruim, povo sem classe, marido sem-vergonha, familiazinha de cornos, empregada suja, colchão de crina de cavalo, chuveirinho mequetrefe, credo...nunca mais essa turba ignara põe os olhos na minha adorável pessoa".

Mas o tempo apaga tudo. Chega o próximo ano e a situação inverte. "Oi Linda, posso passar uns dias com você, nessa cidade dos sonhos? Ano passado eu nem pude te receber, como sua augusta pessoa merece.Você sabe que eu, nem os meninos, te incomodaremos." E começa tudo outra vez.

Dever favores, dívida maldita. O pagamento em geral é feito com juros extorsivos, nele vem embutido coisas indizíveis, sem preço. Mas a vida é assim, a cada dia que passa tenho a certeza, prá lá de absoluta, que gente odeia gente. Assunto encerrado.



sábado, 11 de dezembro de 2010

SEM PALAVRAS




Há estórias que a gente conta e até Deus duvida. Essa aconteceu comigo e tenho uma testemunha. Estava eu de conversinha com minha amiga Andréia sob uma árvore de uvaia adornada com uma solitária frutinha remanescente da colheita. Nas grimpas. Aos poucos fui sentido um torpor inebriante, uma mareada salutar. Era o aroma da uvaia desemparceirada. Ele descia pelo caule fino da árvore e me envolvia sem dar lugar a qualquer contestação. O autoritarismo do aroma é como o da música, escorre pelas portas trancadas, pelas janelas cerradas, pelas grades de ferro, pelas cercas elétricas e exercem seu poder absoluto. Para livrarmos deles temos que perder alguns dos sentidos. São os donos do castelo.

A certa altura já não sabia como estava me portando com minha amiga, escutava ao longe sua voz, mas meu mundo era outro. A uvaia e aquele aroma tão peculiar me arrebataram por uns instantes da realidade. Eu me via correndo totalmente envolta no sortilégio da fruta. Por onde eu passava as pessoas eram contagiadas pelo aroma entorpecente que exalava do meu corpo. Percebi que uma paradoxal pequena multidão corria atrás de mim enlouquecida pelo meu rastro perfumado amarelo-ouro, se aroma tem cor. Delírio.

De súbito voltei a mim e continuei a conversar com minha amiga, acho que ela não notou minha saída do ar. Foi aí que aconteceu o inusitado. Passou correndo por nós um rapaz jovem. Eu, sem pensar, falei, ei moço apanha aquela fruta lá no alto para mim? Ele me olhou e de um salto sem nada dever aos felinos venceu os tímidos galhos da árvore apanhou a uvaia, desceu na mesma rapidez e me a entregou, como se a uvaia fosse uma camélia e eu a dama.

Com a uvaia na mão busquei em algum lugar dentro de mim um única palavra para dizer ao jovem. Confesso que poucas vezes as palavras me desafiam, mas naquele momento vivi onde as palavras são prescindíveis. Ele partiu e eu tenho a uvaia para sempre como o símbolo do gesto singelo imprescindível para se viver neste mundo. Andréia apenas sorriu.