sexta-feira, 29 de novembro de 2013

História antipática, eu não a leria, mas não é ficção

Érico Veríssimo já alertava para o perigo de sentar-se junto a um desconhecido em um banco de praça. Segundo o renomado autor, em 15 minutos de conversa, as pessoas fazem um repasse da própria vida, em seus detalhes mais sigilosos. Sempre me perguntei o porque dessa abertura, dessa confidência tão fora de lugar. Hoje tenho consciência que as pessoas não contam a vida para um desconhecido, elas nem veem o desconhecido, elas simplesmente falam o que querem e já sabem que dali, certamente, não virão as censuras típicas dos ouvintes-amigos de histórias de vida do outro.

Eu estava sentada no banco de uma praça e ali assentou, bem pertinho de mim, uma mulher com o braço direito na tipóia e várias escoriações pelo corpo e rosto. De vez em quando dava uma gemida. De repente passou a gemer alto e eu me vi na contingência de perguntar:" a senhora está se sentindo mal? Precisa de alguma coisa?" Ela me contou a tragédia. Depois de quase 3 horas de banco na praça, já sabia que o filho mais velho demorava, quando nenêm, 45 minutos mamando em cada peito, pobre mulher! Contou-me várias passagens de sua vida, que pelo visto, não era das mais fáceis. O marido dava ataque de risos quando alcançava o orgasmo, ela tinha ódio e eu também. Contou que a filha de 17 anos era uma atrevida e que gostava de usar roupas de homem, não entendi, isso é tão normal.  Compadecida com as desditas da estrupiada, dediquei-lhe minha tarde. Ficamos amigas íntimas e inseparáveis. Mas o que realmente importa ao leitor são as escoriações de minha nova amiga. Lá vai.

Ela é enfermeira, chama-se Daluz. O acidente aconteceu dentro do hospital. Segundo Daluz, quando chega ao hospital um paciente muito grande e pesadão, a turma da enfermagem entra em pânico, sobretudo se o enfermo é uma mulher. Contou-me da luta que é para fazer a higiene da doente, colocar  e tirar a comadre sob uma mulher muito gorda, dar banho, etc...Mas o grande drama é na hora de trocar a roupa de cama, principalmente quando a doente não pode levantar. Foi nessa tarefa que o desastre aconteceu.

Ela e a companheira de trabalho, menos experiente, foram trocar os lençóis de uma criatura expressivamente acima do peso. A técnica é a seguinte: vira a paciente de lado com todo o cuidado, tira da parte livre da cama o lençol usado e já coloca o limpo que será passado por baixo do corpo da doente que deve ser virada, delicadamente, para o outro lado, já sobre o lençol limpo. A mesma coisa é feita do outro lado. Nessa ginástica os lençóis são substituídos e o assunto encerrado. Gotas de suor costumam acompanhar a função.

Nesse maldito dia a paciente meio agitada com o movimento, não colaborou com o rola rola dos lençóis e rolou junto em uma manobra nunca vista antes. Quando Daluz deu por si, estava no chão embolada com os lençóis, com a doente e com a ajudante, que na agonia de impedir o desastre, foi junto, passou por cima da cama e revirou sobre Dona Amarilda que jazia viva sobre minha amiga semi-desmaiada. O saldo foi o pior possível. Em geral, as camas dos hospitais são altas, e Dona Amarilda em queda livre deixou Daluz com um braço quebrado e escoriações pelo corpo e rosto, como mencionado acima. A ajudante não se livrou incólume, apesar de ter ficado por cima das duas. Ao cair, bateu a cabeça na cabeça da doente violentamente, está em coma com contusão cerebral. Dona Amarilda só levou um grande susto e teve todos os soros e aparatos médicos ligados novamente, depois de ser colocada na cama por 4 homens fortíssimos da Força Tarefa, chamado para socorrer a "gordinha" . A família vai entrar na justiça contra o hospital, acusando as enfermeiras de incompetentes.

Essa história é uma história triste, como disse Daluz: "as pessoas deviam ser magras, não por estética ou beleza, mas por caridade com seus cuidadores nos infortúnios da vida". Segundo ela, ninguém sabe o drama que os enfermeiros passam nos hospitais com pacientes gordos. Não é raro enfermeiros com sérios problemas de coluna, dores no corpo e para completar o quadro, ainda sofrem os desaforos dos doentes e familiares. A única parte divertida dessa tarde foi uma história que me contou Daluz, de ter precisado em uma ocasião, de 3 enfermeiras para tirar uma comadre debaixo de uma gorda. Como não conseguiram, tiveram que chamar um enfermeiro para ajudá-las,  indignado, Luisão foi na força bruta e bateu o corpo com comadre e conteúdo na parede ao lado da cama. Tomou banho com soda caustica e bebeu o que sobrou. Morreu.

Só conto essa história para que as pessoas, eu inclusive, fiquemos atentos para entender como nosso sobrepeso, pode aleijar uma pobre enfermeira e até matar os profissionais da saúde e de outras áreas.





segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O CRIME

O homem entrou na casa e antes de cumprimentar toda a família, sentada a sua espera, olhou para sua esposa e vociferou: "nossa, como você engordou, Antonieta"? A vingança estava concretizada. Pobre Antonieta, preferiria um tiro certeiro no meio da cara, a uma ofensa de tamanha magnitude e precisão. Como pode esse imberbe cometer o atrevimento de me insultar a frente dessa detestável família? Levantou-se furibunda para dar-lhe um tapa na cara lisa, mas tropeçou no maldito tapete persa e ali, como uma melancia rachada, lutava para se colocar de pé. Remo olhou para trás e disparou mais 5 tiros, os de misericórdia: "gorda, gorda, gorda, gorda, muito gorda". Antonieta o olhou com olhos mortiços e murmurou suas derradeiras palavras: "gorda não, Remo". Ainda no chão deu um sorriso próprio dos morimbundos orgulhosos perante o inevitável e morreu.

A história passou assim, vou contar. Antonieta e Remo foram casados por uns poucos anos, cinco ou seis. Ela, dona de si, com uma auto-estima bem além do merecido, rica por herança, analfabeta por pouca inteligência e bruta pela própria natureza. Remo, rapaz simples, bonito, sagaz nas ideias e comentários, emprego bom mas com baixa remuneração, era um lorde no "saber tratar". Casaram se por um sortilégio do destino e tiveram uma filha, horrorosa, menos pelo aspecto físico, mas por ser um clone da personalidade materna.

Mãe e filha se juntaram para humilhar Remo. Era daqueles prazeres inexplicáveis que certas pessoas sentem ao diminuir alguém. Remo não tinha barba, isso lhe valeu o epíteto doméstico de "o imberbe". A felicidade da mulher era colocar o marido em situação de constrangimento, Remo sempre calado. Antonieta, sem ter o que fazer, arrumou um emprego para "recrear suas tardes", foi ser contempladora da natureza. Saía correndo logo depois do almoço, já atrasada, e sentava em algum lugar bucólico, para à noite, escrever suas impressões sobre a natureza. Pretendia escrever um livro sobrenatural, explicava às amigas. Essas últimas, da mesma estirpe e psique alterado, já a chamavam carinhosamente de "Dostoieviska", único apelido compatível com o brilho da quase Nobel, Antonieta.

Extenuado pelas humilhações, Remo resolveu matá-la, só não sabia como seria o crime, podia ser à facadas, a tiro, por afogamento, tinha muitas alternativas, quem sabe por tortura? Afinal, Antonieta já lhe devia uns bons anos de humilhação. Mas o crime foi adiado, o patrão de Remo o designou para trabalhar em uma agência fora da cidade, ali ficaria por 6 meses. Remo partiu, imberbe e com ódio de Antonieta, da filha e das amigas que o encontravam na rua e antes de qualquer movimento, passavam a mão no rosto.

Voltou exatamente ao dia seguinte, quando completavam os seis meses previstos para estar fora de casa. O resto da história já sabemos. Remo ainda não sabe se a glória de sua viuvez se deve ao tombo ou à maldita palavra......GORDA.

sábado, 23 de novembro de 2013

Memórias

Eu queria escrever  muitas coisas, contar todas as minhas aventuras e esterilizar todas as recordações, as que já são e as que virão. Sinto saudades do Brasil, de BH, de muitas pessoas, inúmeras. Ficar um tempo fora do país é muito difícil, mas voltar é muito pior, não há glamour. O tempo para no dia da partida, mas para apenas para os que partem. A memória é uma faculdade mental imprescindível, mas cheia de caprichos, de idas e vindas. Ela se apresenta sem ser chamada. Como escreveu sabiamente Montaigne, " nada se imprime de um modo tão vivo em nossa mente como aquilo que desejamos esquecer".

Hoje estava ouvindo David Bowie e meus pensamentos viajaram para o passado, fui à Urbana, de onde sai em 1991. O coração me bateu como o dobre de finados, ouvia "Dancing in the street", amava essa música, mas ela podia ter ficado lá, minha tarde foi perdida. A memória às vezes é abusada, atrevida. Todorov escreveu: "ter sido vítima abre à pessoa uma linha de crédito inesgotável". Mentira, esse é um crédito ficcional, não há créditos para os infortúnios que podem ser inúmeros, há de siderar a parte triste do passado e buscar  alegria no simples fato de ser o que é. Esse é o autêntico rosto da vida.

O pensamento falava devagar como água caindo, gota a gota, olhava minha cara no espelho, notei que ele não tinha páginas, sou tal e qual sempre fui. Foi quando me dei conta que se as sombras caminham, porque não havia eu de caminhar também? Foi quando me dei conta com clareza que sou a timoneira de minha barca, em parte, no mais sigo o fluxo do meu destino. Ele é marcado por algumas tristezas indeléveis, e o pior, com regras do jogo incompreensíveis, mas necessárias, pois vivemos com adversários e nem sempre percebemos isso. Qual riso posso dar perante tal constatação? Um riso filosófico, nada mais. Quem respeitou algum dia essas regras ou se deu conta que se as respeitasse seria um ser humano melhor? Conheço algumas pessoas que as respeitaram, aliás, muitas.

Vou voltar a escrever, que seja uma frase por dia. A de hoje é: para que oxidar a vida se ela se oxida por si? Sempre falei às pessoas: preste atenção e eu não prestei, Vou voltar para BH e encontrar uma outra cidade, outras pessoas, não aquelas que estão em minha memória, paralisadas. A BH transformada pelo tempo, isso só nota quem saiu e voltou, ainda que por pequeno tempo. Mas é um tempo que se pode gerar, gestar e ter um filho, uma nova vida. O fenômeno está no poder indiscutível da realidade, ela, só ela tem a força de se impor, atuando para o Bem e para o Mal. Por isso é que uns dizem que a salvação ou o livramento da realidade pode ser o suicídio, o alcoolismo ou a loucura permanente, sem volta. Que trágico! Risos. O esquecimento é a melhor saída, eu acho.

Enfim, a compensação pelo peso de começar um tempo novo, é que esse tempo  está desintoxicado do passado. Talvez nada tenha mudado, só eu.