sábado, 17 de novembro de 2012

A amante epistolar

Quando recebi sua primeira carta, imaginei ser mais uma das brincadeiras de minhas amigas. Isso aconteceu há 30 anos. Até hoje, a cada carta que chega, levo uma semana para me convalescer da feliz inquietação que elas me deixam. Nas primeiras, tinha uma grande curiosidade de saber quem seria o autor, o poeta que me escrevia. Você passou a ser o grande protagonista da história da minha vida, o carteiro, o homem mais esperado e ele sabia disso. Sempre me entregou as cartas em mãos, discretamente, às vezes dois ou tres dias depois de chegadas. Foi meu cúmplice silencioso.
Entre uma e outra carta eu fazia um esforço inimaginável para viver minha vida real. Impossível, meus pensamentos abriam alas para as frases, que eu já sabia de cor, da última carta recebida. O notável é que durante todos esses anos, nunca pensei em seu rosto ou no seu corpo, eu amava apenas as suas palavras. Foram elas que ativaram meu coração, meio desenganado, pelas intempéries do embate conjugal. Você falava que me via na rua, eu nunca reparei em uma pessoa específica, será que você se escondia?
Sua letra era para mim como a partitura de uma sonata. As palavras que traziam um til, me davam a idéia de que a frase inteira estava sublinhada e em negrito, eram palavras que caminhavam em disparada para o meu coração. Esse coração que um dia vai parar definitivamente, deu várias paradinhas enquanto eu lia você. Todos os meus sentidos ficavam a postos lendo e relendo a descrição que você fazia de mim, seria eu mesmo essa mulher que te inspirava frases dignas de publicação? Nunca as publicizei, elas eram só minhas, elas eram a afável melodia que nunca foram tocadas em meu embate conjugal.
Também é verdade que, a rigor, você foi mau comigo. Eu amei uma vida inteira pedaços de papel, palavras sem autor, elogios sem procedência, pequei sem pecar, sofri a auto-punição moral, não vi a vida passar. Era a espera involuntária no início e depois imprescindível da chegada uma nova carta. Você quer que eu me encontre com você, quer se tornar real. Não, eu não vou, eu não quero nunca saber quem é você, nunca passarei à porta desse endereço que traz junto ao remetente, sabe porque? Bem, é difícil dizer, mas eu sou uma amante epistolar. Se quiser escrever mais cartas, escreva, se não quiser, envie a outra destinatária, quem sabe ela vai ao seu encontro?