segunda-feira, 24 de maio de 2010

CORNEIA LOGO!!!!










Só de ouvir falar a palavra corno as pessoas arrepiam de medo, é o mesmo que a morte anunciada. Essa é daquelas palavras que entre o significado e o significante não há espaço para pensar, é só dor no peito. Não existe esse que nunca levou um corno daqueles bem estruturados que a única saída nobre é a rigidez sepulcral. Bem, se não levou, só não levou ainda, espere...é uma questão exclusivamente de tempo, ou melhor, falta de tempo do outro. Sabem aquele cara imbecil de carteirinha, tímido escarlate de vergonha, meio estrábico, cabelo oleoso, ignorante juramentado, pobre de dar dó, andar arrastado e papo fraco, é o maior corneador da cidade. E a mocinha faceira, andar de libélula, sorriso adocicado, corpo traçado à régua e compasso, cabelos longos e dourados, pele aveludada, voz de abajour lilás, olhar colorido, herdeira rica e filha única, é a maior "corno" da cidade. Vá entender um despropósito desses, aliás nem queira, isso é um dogma, aceite e assunto encerrado.

Há uns incautos que se metem a teorizar a razão do corno. Tarefa sem sucesso. Corneia-se por qualquer razão, os homens pela simples necessidade de ejacular a êsmo, uma bobagem, e as mulheres...essas sim, corneiam "por amor". Amor de perdição, amor bandido, sofrimento atroz. Depois do "crime" passam a vida expiando a culpa horrível de ter traído o marido e os princípios cristãos. Diferente dos homens que traem e saem felizes com o grande feito, as mulheres se auto-flagelam, são capazes de cortar a própria carne para se livrarem do cancro da culpa. Mentira universal. Mulher trai porque trai e se reveste o 'pecado' com a retórica do amor é só para não trair também a estratégia mental dos ardis femininos.

A arte de cornear está entre as artes mais desprovidas de qualquer dom inato. Até a genética mais rasteira traz intacto o gene do corno. Esse sobrevive de Adão a nossos dias, um fenômeno verdadeiro. E assim caminha a humanidade, é corno para todo lado e a consequente dor de corno sem remédio, uma tragédia geral. Esse é o maior atraso da medicina. Aquele que descobrisse uma vacina para esse mal epidêmico (ser o corno, porque cornear é um deleite ímpar) colocaria Bill Gates no bolso. Sei de gente que tomaria logo uma dose dupla para não padecer dessa dor que torna a vida impossível por um tempo. Sim, é por um tempo mesmo. Ela passa e não deixa saudades, nem lembranças.

Tenho um amigo que resolveu cortar esse mal pela raiz. Diz ele que suporta a fome e o frio, mas um corno jamais, esse o levaria à morte, morte súbita. Para sobreviver nesse mundo de corneadores profissionais, ele dispara aos gritos para a moça no segundo encontro:"corneia logo filha da mãe, livra-me dessa expectativa maldita". A moça assustada some de vez sem o tempo hábil para cornear o incorneável. Hoje ele tem registrado em cartório dois mil e quinhentos namoros de dois dias de duração. Segundo sua teoria é melhor levar para a cripta gélida as desditas da vida, a cornos históricos e imerecidos. O único namoro que durou uma semana ele corneou a moça com a faxineira do prédio. Regra é regra e nada de fugir a elas. Corneia logo!!!!!!!!!!!!!E estamos conversados.

A máxima é: "quem nunca levou um corno que atire a primeira pedra".

domingo, 16 de maio de 2010

SAIR DO MUNDO V




Isso me enlouqueceu, como uma pessoa ia prá um lugar público e não jogava uma aguinha nos pés, enojada virei de lado, saquei que tinha gente na frente. Minha fileira passou incólume, nínguem. A pessoa que estava na frente não parava de mexer, comia como Ronildinha, a bela, que até hoje sou grata pelo café e ingrata pela tortura visual. Será que Patrício ainda continua o namoro? Sei lá, às vezes tomou tenência e doravante faz pesquisa de comportamento antes de azarar as moças. Pensando melhor é bem feito para ele, tipo lento. Há um tempo atrás se as moças atacassem os homens era um horror verdadeiro, mas eles encaravam e davam conta do recado, hoje tremem de medo perante a iniciativa feminina. Por isso não tenho dúvidas, os homens têm demonstrado que são todos meio frouxos, bem, é o que me contam. As mulheres estão levando a melhor, se esbaldam e ainda chamam o cara de bicha. É a vingança retroativa às gerações pregressas que sofreram nas mãos dos “vão ver quem canta nesse terreiro”, hoje piam.

Voltando à minha triste situação de estar entre um "chula" que desafiava todos os pós antisépticos e um inquieto daqueles que incomodam até o nada, fiquei com o primeiro, a posição era mais cômoda para mim. O bom foi que o homem da frente estava comendo Mentex e quando jogou a caixinha no chão, com mãos de pluma puxei a bichinha e mandei prá dentro as duas balas que o abençoado deixou prá mim. Sentí que já estava fazendo novos amigos. Voltei ao "chula" e declarei guerra definitiva aos dois. Liguei a lanterninha, tinha que ser módica porque se a pilha acabasse a coisa ia ficar literalmente preta. A mulher, não sei se nova ou velha, carregava uma anomalia que tenho a mais solene antipatia, o dedão agressivo. Carro-chefe dos outros quatro humildes dedinhos meio encurvados nas pontas. Coisa de tirar qualquer um do sério. Pensei, daqui esse pé não saí desse jeito. Sensibilizada pelos quatro dominados resolvi dar-lhes poder, esticando-os, igualando-os. Tarefa díficil mas não impossível. Cheguei a mão bem devagarzinho perto do segundo dedo da irmã de Cinderela e dei um puxão rápido. Sem dar tempo para que ela reagisse agarrei o terceiro, o quarto e o menor de todos que tinha uma unha pontuda mais afiada que dente de cachorro nenêm. Fiquei estarrecida com a reação da dona. Ela puxava o pé, retorcia o corpo, chutava, e eu alí, agarrada. Ao mesmo tempo que ela tentava por a mão na chapona, segurava nos braços da cadeira para não escorregar chão abaixo tais eram os meus furiosos arrancos. Nisso peguei na canela dela e dei um beliscão fininho provocando na atacada um grito desentoado, e todo tipo de movimento para desvencilhar o pé do caranguejo atacante. Parece que o desespero proveu-lhe de uma força hercúlea que puxou o pé da minha mão querendo levar vantagem, mas eu, encapetada apertava o bichão com tanta força que já estava mordendo a língua e desafiando “vão ver quem arrebenta essa corda primeiro”. Decidi ganhar a briga. Com as duas mãos segurei o roquefort, arranquei a sandália do pé da inocente ordinária e joguei pro alto, a cestona (sandália de corda) acertou a cabeça do rapaz inquieto que levantou meio tonto com a sapatada e desferiu um safanão na primeira têmpora à vista, era a da desgrenhada que deu um uivo e desmaiou. A coisa ficou complicada todo mundo falando inclusive eu que apareci no tumulto gritando escandalosamente, foi êle, esse bruto, foi êle que nocauteou Frutuosa Pau de Sebo, a irmã da delicada Cinderela. O cara saiu do cinema preso, a dos “pés que insultam” de maca e eu aproveitei para ficar com a bolsa da ingrata desequilibrada que não aceitou uma ajuda filantrópica: podólogo no cinema.

Quietinha depois de tanta balburdia, de bolsa nova, assití duas sessões do filme. Fui ao banheiro vasculhei minha bolsa nova, dinheiro só dez contos, um maço de cigarros, baton quebrado, uma conta de luz, dois grampos de cabelo e o melhor....uma caixa fechadinha do meu querido LEXOTAN. Foi a glória. Tomei logo dois prá relaxar e assim fui virando dia e noite no cinema buscando coisas no chão para comer, banhos esparsos, fumando à noite depois de tudo trancado e sem a menor vontade de voltar ao mundo da claridade.
Cinema também é diversão e eu me divertia só de não ouvir as vozes das pessoas que passam a vida querendo de mim a única coisa que nunca estive apta a dar, nãp posso contar o que é senão aumenta a fila. Lembrava das coisas de minha vida mas as fileiras das cadeiras me entretinham, elas nunca se movimentavam, nunca se dirigiam a mim como se eu fôsse uma a mais, pensava no meu serviço e era como se não tivessem passados quase 20 anos que trabalhava alí, e agora, não queria voltar nem para dizer adeus. Triste, sem nenhuma vontade de ir prá casa sabia que a felicidade de morar no cinema teria um fim. Quando as portas abriram para o início da primeira sessão saí meo trôpega e azaradamente dei de cara com uma amiga que me perguntou agressivamente: o quê você está fazendo aqui? Olhei firme nos seus olhos de espanto com o meus meio fechados pela intensa claridade, sorrí e apenas balbuciei, vim ver cinema. Cheguei em casa à noite depois de dar uns bordejos pela cidade, acendí a luz, o telefone urrava, atendí, nada importante. Troquei de roupa, apaguei a luz e enquanto escrevo essa história comemoro 9 anos de vida dentro dos cinemas da cidade, a cada semana um diferente. Consigo até escrever no escuro, uma dádiva!

SAIR DO MUNDO IV


Hora de levantar, olhei por baixo das cadeiras e não ví nenhum pézinho, imagine alguém aparecendo de súbito na sua frente em pleno início da evasão do ócio. Comecei a tarefa de “surgir” com prudência, cada movimento era pensado e acompanhado por alguns segundos de total imobilidade. Até que me assentasse na cadeira com a dignidade dos que ali estavam legalmente, tive que exercer a prática do contorcionismo, tudo doía. Começando pela cabeça, era fome, o pescoço, foi o travesseiro, os braços, sem dúvida dormí sobre ambos, a coluna, desencarrilhada, as pernas, dormentes, e os pés, acho que passaram a noite em posição de morto, cada tentativa de aprumo eram fincadas distribuidas pelos quatro pontos cardeais desse trapo, eu. Depois de “trabalhar”, como dizem os alternativos, o relax, notei que o filme era outro, tinha tempo para assistir mas antes ia ao banho de pia, um suplício.

Discretamente sentei ao lado de um casal jovem. A donzela tinha nas mãos um saco de pipocas, um copo de Coca e uma barrinha de chocolate. O rapaz era educadinho mas a mocinha tanto tagarelava como comia as pipocas às mãozadas, enchia a boca e bochechava e gargarechava com a pretinha, coisa de irar qualquer um. O fato é que o namorado ficou sexualmente atraído pela grulhenta impolida, começou a bolinar a bichinha e ela, resistente à princípio, cedeu à popica, desprezou as pipocas, largou de lado o saco já pelas metades, e se esqueceu da pretinha babujada. Foi a minha salvação, tomei um lauto café da manhã, o chocolate foi a sobremesa, simplesmente opíparo. Aí bateu-me a dúvida, mudar de lugar para não ser acusada de roubos de pipocas e Coca usada ou ver até onde ia aquela pouca vergonhagem. Decidi pela segunda opção, o filme ficaria para depois, tinha tempo. Fiquei quietinha, mas de olho.

O trem pegou fogo, a mocinha não era desse mundo, beijos daqueles de tirar o ar eram fichinha, êle, o rapaz, que no começo pareceu-me o danado, não controlava a situação que êle mesmo criou. No que o aparente entrão arriscou a mão meio trêmula na sobreloja da quentona, ela ordenou, pega firme cara e com a mão esquerda segurou o orgão assustado e até arrependido do coitado, grande provocador da fuxicação. Pelo movimento do cara tentando puxar o corpo prá trás saquei logo que a moça foi na bruta. Inebriada pelo desejo que lhe ardia sem tréguas a moça manteve a força, só isso explica o sussurro do infeliz, larrrga diaba, isso aí não é iôiô não. O pior é que quando êle a abraçou a carinha do inexperiente sacana ficou de frente para meu lado direito, foi dureza ver tudo sem virar o rosto. Entretanto, nessa hora que era de dor, dei fôrça, virei levemente o rosto, também desfigurado pela loucura da qual era testemunha ocular e em solidariedade fiz o sinal da Cruz. Envergonhado, Patrício, esse era seu nome, apertou os olhos e repetiu, larrrga. Acho que era um moço de família. Foi cumprir a obrigação de tirar um sarro no escuro e caiu na armadilha de uma mulher guiada pelo príncipio da volúpia. Eu de olho. A coisa ia esquentar porque aquela não era mulher de deixar barato. Êle, o culpado de tudo, que ao invés de deixá-la comer furiosamente as inofensivas pipocas e conversar em pleno filme, quis ser “gentil”, mostrar o quão romântico e macho era, tomou.

Não sei se por necessidade de apoio ou de alguém que no pós-sarro rezasse por sua alma, Patrício tomou-me como conselheira através de um código que criamos na hora. Enquanto Ronilda, (até disso eu já tinha conhecimento porque uma hora êle falou com ela, você é linda Ronildinha, eu pensei, que falta de gosto seu bicha) tentava abrir o fecho da calça de Patrício, êle incomodado olhava prá trás, pros lados, mas cutuquei-lhe o braço e fiz um sinal de “barra limpa”, vai firme cara porque hoje é hoje. Nisso ela abaixou e pôs a boca onde o capeta tava solto, acho que a meio pau, Patrício olhou prá mim e eu, a cúmplice fiz aquele olhar de “fazer o quê?” Patrício chegou ao climax e que vexame, de mãos dadas comigo. Tudo terminado, eu, extenuada pela imoralidade alheia, olhei para o gozador, sorrí e pensei, filho da puta. Mudei de lugar, precisava dormir. Voltei para o final das fileiras, fiz minha caminha e até a próxima. Acordei com um pézão na minha cara. Odor para exportação. (Continua no SAIR do MUNDO V)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

SAIR DO MUNDO III


A véinha, de inha não tinha nada. Ela era esquálida mas grande, tão grande que estava sentada com as pernas abertas porque as próprias não cabiam no espaço entre as fileiras. O cabelo também era grande e solto, coisa do outro mundo. Ainda assustada com a minha brusca chegada, a anciã fêz um bico torto com a boca e me atravessou com um olhar satânico que me valeu uma fincada enviezada no estômago e uma lágrima no canto do olho esquerdo que desceu cara abaixo para ir ficar no balança mais não cai no lóbulo da orelha. A bicha devia estar adentrada nos oitenta e só Deus sabia o que a esgurida estava fazendo alí. Tinha nas mãos um saco de um quilo de biscoito de polvilho que devorava com a sofreguidão dos recém apresentados à comida. Dentro da boca os biscoitos viravam chocalhos, eram barulhos incompatíveis com a apresentação física do biscuitim, eu, por mais que tentasse não conseguia prestar atenção na película. A ruminante falava sózinha, xingava os artistas, blasfemava contra Deus e os homens, amaldiçoava a nora que, segundo ela, era a perdição do filho e me dava cotoveladas que se não me safasse com a habilidade que o fiz, não estaria aqui prá contar a história. De repente, na maior falta de respeito a provecta acendeu um cigarro e mediante meu olhar indignado retrucou, fala alguma coisa que te meto a mão no meio do focinho, foi o bastante, afinei. A devedora de cemitério era das violentas. Comecei a amaldiçoar aquele lugar que fui à busca da paz. Resolvi mudar de cadeira quando notei que a desumana já fumada estava meio cochilando. Levantei devagarzinho esperando um bote caso a despertasse, mas a véinha já estava mascando o sono e as pernas, de tão compridas, escancararam. Cena que até Deus duvida..

Até então eu ainda não tinha entendido direito o filme sei que era uma estória de dois irmãos que não tinham sapatos ou perderam, sei lá, o fato é que foram duas horas de troca infinda de sapatos para que os pais não descobrissem que um tinha perdido o sapato do outro. Eu sei que aquilo me pôs neurada, imagine que a essa altura da vida cheia de cataclismas e outras tragédias inevitáveis pelos homens, um par de sapatos pode alterar tão drasticamente a vida de duas crianças. Essa era a minha história apresentada na forma cinematográfica. Coisas irrelevantes assumirem proporções gigantescas. Fiquei com ódio dos pais dos meninos que poderiam até matá-los se soubessem da enorme perda, do professor que maltratava o menino quando êle chegava atrasado por causa da amaldiçoada troca de sapatos, e sobretudo dos meninos que não revelavam o grande segredo e viviam o calvário do revezamento de um par de tênis que ora calçava o menino, ora a menina. O sofrimento era enorme para ambos porque o que sobrava em um folgava no outro. Os meninos eram eu. O inferno por nada.

Fui para a última fileira e ali refestelei na cadeira, afinal a maratona tinha sido dureza. O filme estava menos palpitante do que a platéia, eu, exaurida pelas emoções, sentia vontade de dormir, sabe lá o que é enfrentar em menos de duas horas uma jovem desvairada e uma velhinha transgressora? Caí no sono do mesmo jeito que as pessoas dormem nos aviões, todos durinhos com a boca aberta em forma de O, tal e qual os meninos cantores de Viena. Quando acordei já estava “escuro”, o filme parecia no meio, não sei e na platéia havia várias pessoas, outras. Percebi que a primeira sessão já tinha acabado. Tentei olhar as horas mas não conseguia enxergar até que me lembrei de uma lanterninha que Bebeth, minha amiga, me deu, sou grata a ela e vejam bem, na época achei o presentinho meio fraco, mas naquela hora valia ouro, eram nove e quarenta da noite. Fui à casinha, lavei o rosto e voltei para procurar um lugar para dormir antes de terminar a sessão. Se o lanterninha me visse ia me mandar sair e eu já estava decidida a pernoitar no recinto. Fui prá lateral da sala, na penúltima fileira e devargazinho deitei no chão. O travesseiro foi minha muda de roupa. Deixaria o banho para o dia seguinte. Alí começou meu exílio voluntário. Passaria uma semana dentro do cinema. Eu precisava disso, já não aguentava tanta pressão, perguntas que não tinham respostas, afinal estava vivendo uma vida que eu não queria para o pior inimigo, só para não fugir à tradição da maxima. Já deitadinha sentia que aquela seria uma noite de liberdade. Nem bem me acomodei sentí a transição do estado de leve torpor ao sono profundo. Não deu outra. Acordei no escuro sem saber onde estava, imediatamente me lembrei da minha nova morada, dormí mais um tempo indefinido até que fui acordada com a conversa de duas mulheres que deveriam ser as faxineiras do sala de cinema. Sacaneada com a invasão domiciliar tive algumas idéias para assustá-las mas preferí dormir mais um pouco, é lógico que se estavam começando a varrer as primeiras fileiras, minha casa seria deixada para o dia seguinte. Quando acordei novamente com vozes percebí que estava começando a sessão, faziam 24 horas que eu estava alí, relegada ao ostracismo ...felicíssima.  (continua no Sair do Mundo IV)

SAIR DO MUNDO II








Uma mulher que eu já havia visto na fila para comprar o ingresso, com seus vinte poucos anos, resolveu mudar de lugar e sentou-se exatamente do meu lado, bem agarradinha. A danada parecia egressa de algum hospício da cidade. Olhava para a tela com olhos desorbitados para que dali não lhe escapasse nada, eu, hirta de pavor, também olhava para a tela, mas não via nada, minha única preocupação era o momento do ataque da louca. Passei a sofrer de uma taquicardia sonorizada incontrolável. Bate baixo coração era a única ordem que eu conseguia proferir para o descontrolado, mas o próprio, ao invés de baixar o volume, passou a batucar dentro do meu peito. Simultaneamente fui atacada por uma coceira no braço, daquelas que a gente tem vontade de cravar as unhas e arrancar um pedaço, mas mexer como? O medo da dona era algo tão intenso, que o leve suor que sentí no começo passou a um hircismo jamais sentido em todo o continente africano. Pensei, agora ela me mata, com um cheiro desses, não há quem mereça viver. Preparada para o rito de passagem, sentí um dedinho gelado encostar no meu anti-braço e afundar no tecido que de adiposo se tornou poroso, sentia o toque no osso. Essa intimidade mexeu com meus bríos, fiquei possuída e virei-me rapidamente para o lado “tipo passar sustinho”. Deparei-me com um sorriso besta afivelado na boca e um olhar adefuntado. Trêmula, sorri para a desvairada e proferi um simpático oi, atitude pusilânime sem precedentes na história. Da total paralização facial anterior, as narinas da maníaca do cinema se abriam e fechavam à moda de um touro na arena, o ataque se anunciava inevitável. Qual nada. A aparição feminina enebriada pela odor do meu sovaco, azarolhou-se, deu um zumbido e com o riso congelado e as narinas contraídas para o centro, ficou paralisada. Aproveitei aquela paralisia temporária e saí dalí pulando por sobre as cadeiras até que estatelei ao lado da outra mulher. Era uma velhinha grandona e magra. (continua no Sair do Mundo III)

SAIR DO MUNDO I ( Série I II III IV)








Hoje ninguém me acha nessa cidade, vou tirar o bloco da rua. Com essa idéia fixa na cabeça peguei uma muda de roupa, um sabonete e bye bye. Com o pé na rua comecei a pensar, e agora? Para onde vou? Quero desaparecer do mundo, não suporto nada, nem a respiração humana. Quero desaparecer. Se isso só é possível com o suicídio, resolvi, como paliativo, passar umas horas no anonimato total, pequena saída. Entrei no cinema. Eram duas da tarde. Tudo escuro, que felicidade meu Deus. Àquela hora só tinham oito pessoas na platéia. Sentei em lugar discreto e sem saber qual era o filme ou os artistas. Comecei a observar os meus companheiros de deleite em hora oficial de trabalho. Dessas oito pessoas, não sei se aposentadas, endividadas ou sem o que fazer, seis eram homens e duas mulheres.

Os homens eram todos do tipo pouco apreciáveis à exceção de um que parecia estudante gazeteando aula. Cada um se assentou em uma fila ajeitando e deitando o corpo, ora suspirando, ora tossindo, ora bocejando, o relax era total. Nisso um dos homens deu um bocejo chorado e gemido. Eu sempre tive antipatias de quem emite sons eróticos no pós-bocejo, mas noto que essa característica é mais comum que imaginava. O pior é que o raio do “abrir boca” pega e aí, de um bocejo único, seguiram mais oito formando uma pequena orquestra de câmara sem maestro. Um deles não conseguia completar o prazer do bocejo e passou os primeiros dois minutos de propaganda que antecedem o filme, na luta entre a boca escancarada e os espasmos do bocejo frustrado. O som da puxada de ar desse cidadão alterou a respiração de todos nós, eram bufadas e estrebuchos de todo lado. Quando o incompetente conseguiu completar o bocejo a contento, soltou um uivo tão agudo que um dos “cinéfilos”, quase sufocado, vociferou, com voz esganiçada quer matar a gente ô tísico? O infeliz, agora outro homem, com as forças recuperadas pelo antológico e cinematográfico bocejo respondeu um sonoro vai à merda seguido de um sem-educação acompanhado de um é a mãe. Comecei a gostar, a tarde seria animada, a turma era das quentes. Dei uma olhada geral e saquei, aqui só tem gente “sem berço”. Detesto essa metáfora. Até parece que ter berço é sinal de estirpe e boas maneiras. Conheço gente nascida em berço de ouro e nem por isso.