sábado, 20 de fevereiro de 2010

SEM PERDÃO









NAVIO NEGREIRO CASTRO ALVES
(1847-1871)

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.


II


Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...


III


Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!


IV


Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


V


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
Adeus, ó choça do monte,
Adeus, palmeiras da fonte!...
Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...


VI


Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Danielzinho, meu amor.









Hoje voltando para Madri de Alcalá de Henares, terra de Cervantes, sentou ao meu lado no trem um rapaz, igual a você. Seria injusta dizendo que é igual, igual a você não existe Daniel, você é impar. Galanteios à parte, ele me perguntou bem baixinho, esse trem vai direto para Madri? Outra vez, igual a você, falando baixo e discretamente. Ele usava um óculos, igual ao seu. Fiquei olhando para ele, sem nenhum constrangimento, era você que eu via, pensava, saudade de Danielzinho meu. Era assim que todos falavam, Danielzinho seu passou por aqui. E assim eu perguntava, vocês viram Danielzinho meu? Sim, meu mais querido aluno em 30 anos de UFMG.

De repente, para não negar à semelhança, o rapaz tirou um livro da mochila e começou a ler, pensei, esse cara é um farsante, pensa que é Danielzinho. A partir daí só queria lembrar de você, na sala de aula, pelos corredores da FAFICH, nas tertúlias das tardes que passou trabalhando comigo lá em casa, lembra-se? Sempre falando baixinho, sempre com um livro na mão, sempre amável, sempre disposto a continuar trabalhando.

Pois é, meu Querido, não posso deixar de publicizar a enorme admiração que tenho por você, estudante exemplar, pessoa inequivocamente impar, reitero. Dizem que a gente tem que falar tudo que sente, sabe-se lá o que vem pela frente? Já imaginou uma confissão dessas depois de meu óbito? Você teria medo. Então vai agora, Danielzinho meu aluno querido, meu amor da História. Em breve me dirão, Dr. Daniel passou por aqui....o tempo, esse não para. Te amo Daniel.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O ESPANTALHO




A origem dos espantalhos eu não sei, imagino que a estratégia de usar um boneco como se fosse um homem para afastar os pássaros das plantações, seja bem antiga. Seja ela qual for e tenha o espantalho a função que tiver, eu os admiro, talvez porque os associe com o fresco e inebriante perfume dos pomares. Ali estão dia e noite, impassíveis, circunspectos, silenciosos, cumprindo a eterna vigilância não remunerada.

Às vezes penso que os espantalhos têm alma. Uma alma distinta, uma alma apaziguada, expectadora do vai e vem do mundo, executora impassível das ordens que lhe são dadas pela natureza. O vento determina o ponto cardeal de sua mirada, a chuva o encolhe um pouco, ele resiste, sabe que virá o sol, o sol também o pune e ele resiste, virá a noite, resiste às intempéries e até às pedradas atiradas pelas crianças. Ah, quantos são os tormentos que padecem os espantalhos.

O que mais me fascina no espantalho é o poder que ele detém. Sem dar uma palavra, sem cometer uma violência, sem uma arma à mão, ele comanda e ordena o mundo ao seu redor. Ele impede que os pássaros, tão lindos, biquem com ferocidade as frutas indefesas. É um protetor de plantão 24 horas, é o anjo da guarda das macieiras, dos arrozais, das figueiras e de tantas outras.

Enfim, o espantalho é o senhor absoluto do pomar e vai além, sua figura é presente no pesadelo das crianças, é confundida com enforcados pelos bêbados noturnos, é ameaçadora quando se move em um momento inesperado. Ele é um contemplador da natureza, pela própria natureza de sua criação, é um livre e discreto observador.

Não compreendo porque as pessoas se sentem ofendidas quando alguém as qualifica como um espantalho. Afinal, ele não passa de uma representação poderosa do homem, homem que no pomar não conseguiria espantar os pássaros e inequivocamente sucumbiria aos mandos e desmandos da natureza. Sem um movimento autônomo o espantalho é um herói imbatível. Grande invenção essa.
Que glória seria se me fosse dada a faculdade de transformar-me em espantalho algumas vezes. Teria o invejável poder de afugentar a intromissão de pessoas nefastas em minha vida sem a devida permissão. Assim como o espantalho, o faria silenciosamente, sem arma, sem violência, mas sem perdão.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

SEGREDOS INCONFESSÁVEIS




Todo mundo tem um segredo inconfessável. É algo que guardamos com tanto cuidado que nem o subconsciente se atreve a revelar em um fatal ato falho. Há algum tempo venho querendo apagar um segredo que guardo há anos, impossível. Tenho medo de enlouquecer, aliás essa é uma fantasia que carrego desde menina. Fico pensando em mim louquinha com uma boneca nos braços, embalando-a e cantando cantigas de ninar. Quem seria essa boneca? Alguma de minhas meninas ou as tres que nunca ninei. A loucura sempre me assombrou. Mas agora meu medo não é de ninar bonecas e sair pela rua com o cabelo solto, com uma camisola rasgada e pés no chão. Agora, meu medo é a alienação mental combinada com o fim da censura, uma coisa só. Não tenho medo do meu segredo, porque ele só repercute em mim, mas dos segredos que me confidenciaram um dia.

Tenho medo de contar dos venenos, das calúnias, das perversidades, dos criptogramas da vida, aparentemente indecifráveis, mas que existem verdades veladas que reveladas os desvendam. E desvendá-los é colocar o mundo às claras, tarefa do louco. Tenho medo mas nem tanto, se estiver louca, a minha loucura será útil, ela servirá de álibi dos pérfidos e vís que convivem entre os homens, mas que são feras. Disso já falei.

Meu segredo inconfessável vou confessá-lo, não posso levá-lo para o túmulo. Não obstante a insensatez, eu o revelarei, qualquer dia. Tenho certeza que não serei ressarcida pelo dano que me tem feito guardá-lo.

Queria que esse segredo fosse blindado pela inocência, a mesma que um dia minha filha mais velha, linda como a aurora, com seus olhos cor do mar, marejando, me trancou no quarto e já em prantos revelou-me o seu segredo: "mãe vou te contar um segredo, você jura que não conta para ninguém? Mãe, não existe Papai Noel". Esse era o seu segredo e se revelá-lo foi por um lado uma traição à humanidade, por outro marcou sua entrada no mundo real.

Melhor seria que ela tivesse 30 anos e não apenas 7, se bem recordo. Dizem que é a idade da razão e também da desilusão. Disso estou segura, acho que sim, estou segura.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

POEMINHA







O dia que você me revelou
Querida, eu vou viajar
Senti uma dor lá no peito
E minh’alma cansou de chorar

Então uma voz suave me disse:
Mulher, use a razão
Faça uma conta matemática
Dê tempo para a decepção

Pensei, assim é melhor
O tempo eu vou dividir
No começo uma certa saudade
Depois esperar e sentir

Eu sabia que você ia voltar
Voltar de corpo e coração
Passei água no olhar
E compus para você uma canção

A alegria foi grande por demais
Quando te vi ao portão
O seu cabelo voava
E sua boca beijou minha mão

Se um dia quiser voltar a passear
Eu não te tiro a razão
Da vida nada se leva
E não se abre discussão

Vá, asas não vão te faltar
Viva todas as emoções
Use e abuse da juventude
Por que essa vai acabar

Se decidir por lá ficar
Direito garantido você tem
A essa altura já sabes
Que ninguém é de ninguém

Que não te falte o bom senso
E nunca perca o humor
O que mais tem nesse mundo
É gente de pouco valor

Se quiser voltar outra vez
Venha, não sinta pudor
Ainda que o coração não te queira
A casa te dará calor.

Ande pelo mundo meu querido
Vá sem olhar para trás
Você sabe do que estou falando
Solte a voz, só ela bem lhe faz

Cante e encante as mulheres
Os rapazes também se encantarão
Mas você com certeza já sabe
De quem é seu coração.