quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O CASTELO NA FRONTEIRA


Em um encontro com amigos portugueses historiadores eles me disseram: ei Cristina você está com seu "castelo na fronteira". Versada em alguns temas da história percebi que ali tinha uma metáfora histórica. Um castelo na fronteira é algo a se defender, é algo que está permanentemente vulnerável aos ataques provenientes desse perigoso lugar, a fronteira. Não polemizei, vi que eles se referiam ao meu relacionamento pessoal. Homem mais jovem, bonito, talentoso, simpático e outros atrativos, talvez os mais importantes, os invisíveis. Sim, eu tenho meu castelo na fronteira e não preciso defendê-lo, simplesmente esse tipo de castelo é indefensável, ele tem autonomia para passar de um lado para outro, é só querer.

Mas ali descobri que a vida é "um castelo na fronteira". Essa, eu a tenho na fronteira, essa eu tenho que defender. Não sei o que sou, nem mesmo sei se sou alguma coisa ou se tudo é minha imaginação. Fico horas pensando se o que me acontece na vida aconteceu mesmo ou são delírios de uma psiquê comprometida com a loucura. É como de uma certa forma eu fosse a atriz e platéia conjugadas. Mas isso é fato, artista e platéia não existem em termos absolutos. Mas ser o espectador da própria existência pode ser o momento exato para cuidar do "castelo na fronteira". Pode ser também uma manifestação da crise existencial que não preserva ninguém.

Quando me afasto de mim mesma vem a realidade, aquela pessoa não fez isso, não sente isso, não pensa isso. Aquela pessoa sou eu pela manhã mas já não sou eu à tarde, o que amo à noite, desprezo ao amanhecer, já não sou eu outra vez, é a visão de um espectro que pode ser e pode não ser. Não falo de pessoas, falo de tudo. Será que fui aquele lugar? Será que vi aquelas pessoas? Será que estou aqui agora? E esses livros? De onde aparecem? São torturadores, têm vida e me fazem despaginá-los ainda que os odeie a todos. Essa música que estou escutando me é insuportável, mas eu a adorava ontem. Será que as pessoas me veêm quando passo por elas? Ou sou uma mulher sem qualidades, passa-se e esquece. Eu sinto que sou assim, gosto e desgosto, falta-me a fidelidade de sentimento ou a constância.

Concretamente, é como quando se defende uma tese, o autor tem certeza que não foi ele que atravessou aquele inferno de mãos atadas, sem ação. Ele foi, pesquisou, escreveu, foi avaliado e ponto. Entrou no carro, não sentiu nada, nem emoção, nem felicidade, nem alívio. É impossível sentir retroativamente, fala-se da coisa, mas não a sente nunca mais. Melhor deixar "o castelo na fronteira", defendê-lo é uma tarefa inútil porque não tem fim e não se vive mais que uma vez. Ainda bem.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O celular delator


Eu tenho a presunção de acreditar que sou a inventora do telefone celular. Lembro-me que de pequena imaginava coisas quando estava no carro de meu pai. O devaneio era meu passatempo, odiava e ainda odeio não chegar rápido ao destino. Pena que não estarei nesse mundo quando chegar a era dos Jetsons. O fato é que criava coisas na imaginação, uma delas era um telefone que poderia falar de qualquer parte, tipo portátil.

Hoje não reivindico essa invenção, que estupidamente não patentiei, porque o impostor que o fez era, certamente, um corno. Afirmo que celular é invenção de quem quer saber o que não é para ser sabido. É do óbvio que quando o inventei ainda não era corno, era só uma futura candidata. Ok., essa foi uma de minhas invenções. Não falarei das outras hoje.

Tem gente que gosta de perseguir o outro e o celular é uma arma moderna, letal. Você encontra a vítima onde ela estiver, não tem como esconder. O risível é que o feitiço é para todos, quem procura também pode ser procurado, não há saída. Odeio as perguntinhas...pode falar? Ora, se não pode falar, não atenda e assunto encerrado. Mas a coisa não é fácil como parece, se não pode falar, o outro quer saber porque, onde está, com quem e a guerra é declarada.

O que não se pode perder de vista é que o ser humano é mogâmico só por uma questão cultural, pela natureza somos todos polígamos, isso é fato. A cultura é que impõe essa monotonia, digo monogamia. Quando um quer ficar bonzinho, fiel igual um cão, ele fica e o celular perde sua função policial. Agora se o cabra for safado e transgressor da ordem, mande rezar uma missa por hora, o caso é perdido.

Por falar em traição, que coisa mais antipática é essa. As pessoas ficam com medo de dar a palavra final e enrolam o outro como se ela própria não fosse vítima da confusão que se forma. Eu sou uma crítica das cretinas solenidades epifânicas: "te adoro, mas estou com outra, nem gosto muito dela, mas aconteceu". Que antipatia! Nessa hora dramática as pessoas choram, pedem perdão pelo que não fizeram, aceitam qualquer coisinha, um verdadeiro horror. Melhor seria se a vítima do conquistador fosse imediatamente encarnada por um ser racional que bancasse o fora com a valentia de um titã. Isso eu queria ver, seria um tal de tapa na cara e porrada para ninguém por defeito. A subserviência do abandonado é irritante. Gosto de gente atrevida, "ah é não quer mais? Então vá à....."

Não usem o celular para pegar traições sabem porque? Porque pegam, ainda existe gente burra que atende telefonemas de desconhecidos em horas "sublimes". É revelação prá todo lado. Além do que o tal do celular é caro. Pagar para tomar na cara que é corno juramentado e de carteirinha é no mínimo triste! E o pior, todo corno é generoso, compreende, perdoa e até concorda que o outro ou a outra foi uma bobagem, um deslize malfadado. Assim a história começa outra vez, às vezes invertida, o corneador vira corno. Empatou? Estamos conversados. Vou nessa.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Visão do Paraíso Vingança II



Essa é a história da bela Dona Pilar de Sevilha. Casou-se com o encomendero Dom Francisco de Bilro e em seguida, em seus ingênuos 19 anos, foi para a América acompanhando o marido. Nascido em Alcalá de Henares, ele era filho de uma daquelas antigas famílias espanholas leais ao Rei, devoção incomun naquelas plagas convulsionadas pelos conflitos internos. Dom Francisco já estava adentrado nos anos quando, estimulado pela possibilidade de aumentar sua fortuna, aventurou-se pelo Novo Mundo. Dona Pilar foi uma das primeiras mulheres européias a pisar na nas terras quentes, desembarcou em janeiro de 1512, em Santo Domingos, no Caribe.

Chegando ao Novo Mundo, D. Francisco, em defesa da frágil esposa, confinou-a em casa sob severa vigilância de alguns indíos já pacificados encomendados ao espanhol. De caráter violento Dom Francisco mantinha a disciplina em sua encomienda (terras), aplicando terríveis castigos aos nativos pela mais pálida transgressão. Homem inclemente.

Dona Pilar era autorizada a dar um passeio diário pela redondeza, sempre acompanhada de um pequeno regimento de soldados espanhóis, que a qualquer ameaça à integridade da senhora, estavam autorizados a disparar suas armas. No entanto, o par de olhos azuis de Dona Pilar não podia ser submetido ao controle. Eram olhos de ver. Sem manifestar qualquer alteração em seu comportamento, a jovem sempre pedia para ir até à cachoeira que ficava a menos de 15 minutos de casa. Ali ela se sentava e olhava candidamente para o além, saudades da Espanha? Não. Dona Pilar estava enfeitiçada. Um índio sempre surgia em algum ponto da selva e desaparecia antes que os soldados o percebessem. O jovem exibia uma silhueta perfeita, cabelos longos, andar felino e sedutor. Aquilo sim era a visão do paraíso, da salvação terrena, do descontrole dos sentidos, da fraqueza do corpo, do sortilégio sem antídotos para aplacá-lo. Dona Pilar caiu de paixão, daquela que só se tem uma na vida, sentimento independente e devastador.

Um dia, Dom Francisco teve que sair da encomienda para um encontro com os visitadores espanhóis recém chegados à colônia. Dona Pilar, a ingênua, dispensou os soldados, não queria passear, estava cheia de tristeza pela ausência do marido. Passou o dia dentro do quarto, seus soluços incomodavam os serviçais até que o silêncio invadiu a casa. Dona Pilar teria adormecido, todos se tranquilizaram.

Quando o sol começou a desmaiar e dar lugar a uma lua só vista no Novo Mundo, Dona Pilar foi à janela, olhou em volta, respirou fundo e em desabalada carreira chegou em cinco minutos defronte à cachoeira. Trazia o corpo nu sob uma capa protetora de sua concupiscência. O silêncio da selva era quebrado por sua respiração descompassada e pelo canto dos pássaros, uma sinfonia. De súbito Dona Pilar foi tocada nos ombros por uma pena, aquela leveza era o peso das mãos do índio. O sangue correu pelo corpo da moça, abrasante como a lava de um vulcão. Ela virou-se e deparou com um deus. Um deus selvagem, de olhos amendoados e intensos, pele morena cor de canela, uma especiaria do Oriente, nariz perfeito, boca desenhada por um serafim, guardiã dos mais belos dentes já vistos pela extasiada Pilar. Isso seria uma prova divina? Não, interpretou a moça, um presente de Deus, uma compensação pelo castigo daquele casamento sem amor.

O índio tinha um perfume natural que ela jamais sentira em Dom Francisco. Ele falou umas palavras que ela não entendeu, mas respondeu com um riso afivelado na boca.De seus lábios exalava um hálito deconhecido, inebriante, algo parecido com cacau. Pilar pensava, essa é a verdadeira visão do paraíso, agora entendo porque esses espanhóis não deixam as mulheres espanholas livres nessa terra. Não há como competir, essa guerra é perdida. No entanto, aliviada pelos efeitos da dominação espanhola, Pilar antevia um milhão de índios a seus pés e dentre eles o escolhido. Foi quando os corpos começaram a se entender, como diz o poeta, porque as almas não se entendem não.

A esse encontro sucederam vários outros. Pilar driblava a vigilância, o marido e qualquer obstáculo que a impedisse de cair totalmente entregue nos braços do guerreiro. Passaram algumas semanas e a história tomou rumos inusitados. Pilar se banhava na cachoeira enquanto o índio bebia a água que escorria morna por seu corpo, Pilar deitava na relva e ele depois de olhar com perplexidade aquele corpo branco imaculado, atravessava suas entranhas à moda dos fantasmas. Não havia por ali nada similar aquele idílio amoroso, os dois formavam simbióse mestiça. Pilar lhe ensinou algumas práticas sexuais européias e ele as aprendou e adaptou magistralmente a sua forma, mais natural, ecológica, diríamos hoje. Era uma paixão sem precedentes naquela região. As palavras não faziam parte daquele ambiente e não faziam falta alguma. Com todos os sentidos aflorados o casal transgredia em forma de prazer carnal levemente blindado pelo pecado. Quando a lua surgia ele dançava e provocava no corpo da espanhola dores sem remédio. Pilar e o índio, essa era a grande ironia da conquista.

Uma tarde, depois dos deleites costumeiros, o índio segurou a mão de Pilar e os dois saíram caminhando sem destino. Para Pilar aquilo era um caminho sem volta. Nunca mais veria Dom Francisco, viveria na selva, a natureza seria sua casa e o índio a materialização da imortalidade da alma. Assim foram andando lentamente, o sol se desmaiva coberto de nuvens ensaiando um arremedo da aurora boreal, ele a abraçava, enrolava seus cabelos nos dela, seus olhos marejavam enquanto Pilar era toda felicidade.

Ao chegar no alto de uma montanha, um vento frio fez Pilar estremecer. Ele a apertou firmemente contra seu corpo, informando-a que ele a esquentaria eternamente. Segura, Pilar fechou os olhos e em estado de graça, viveu as delícias do paraíso uma vez mais. Ela não teve tempo de se dar conta que o inimigo é sempre o inimigo, em que pese a paixão. Quando seu corpo caiu pelo despenhadeiro, Pilar era apenas a espanhola realizada no Novo Mundo.

Poucos dias depois nas buscas de Pilar desaparecida misteriosamente, encontraram seu corpo sobre uma pedra e um índio morto sobre ela. Diz a lenda que a cachoeira onde os amantes se banhavam é hoje um santuário dos enamorados, suas águas são sagradas e choram como as cordas de um violino quando o sol se despede.

Há várias formas de vingança ainda que se fira a própria carne. É só uma questão de escolha.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Idade, porque só uma?



Os atrativos da vida mudam com o passar do tempo. Disso não tenho dúvida, no entanto poderíamos ter 3 idades concomitantes. Eu escolheria ter 57, 12 e 44. Quantos anos você tem Cristina? Tenho 57, 44 e 12. A cada idade escolhida para atuar, não saberia nada do futuro. O ter vivido não contaria, perderia a magia.

Com 12 anos estaria dormindo a essa hora, com 40 estaria namorando (?), com 57, ai que antipatia, já saber quase tudo e ainda me surpreender. Ter 12 anos é o máximo, é saber que em fevereiro começam as aulas e que no dia 22 é meu aniversário, mas continuaria com 12. Com 40 seria solteira e assim permaneceria eternamente, com 44 e solteira. Com 58, sinto um grande alívio, já casei, já descasei, casei outra vez, descasei mais uma vez, casei outra vez, não me casarei mais. Já passei no vestibular, tenho 3 filhas, duas netas, um emprego legal e o melhor, não quero continuar nos 57.

As férias vão acabar, tenho 12 anos, farei 58 no dia 22 de fevereiro. Adoro o dia do meu aniversário, parece que esse dia é o mais importante do calendário, é único. Quero comemorar esses 58 anos absolutamente só, quero reviver a cada minuto os 58 anos que vivi. Todos esses anos com todos os seus 22 de fevereiro são meus, só meus.

sábado, 2 de janeiro de 2010

O CORPO POÉTICO



Se assim o foi é porque assim tinha que ser, se assim o foi. Moça mais recatada, séria e tímida não havia na cidade, tornava-se escarlate frente a um simples cumprimento masculino. Os anos passavam e ela não via nada, também não sofria de solidão, seu pensamento era casto de vida. Sua única distração era ler poesias. A vida lhe oferecia isso e ponto final.

Uma tarde, passando por uma praça, ela viu um grupo fazendo uns movimentos físicos sob o comando de um rapaz. O corpo de cada um lhe pareceu uma partitura musical, única. Extasiada ela assistiu às performances com um interesse que até então desconhecia. O maestro observando aquela moça fez um sinal para que ela se integrasse ao grupo. Irritada, ela lhe lançou um olhar de tão soberano desprezo que faria estremecer a mais segura das criaturas e se afastou. Noite insone, noite de vigília, esperava o dia seguinte. Voltou à praça, lá estava o grupo. Por uma razão inexplicável ela individualizou o maestro. Sentiu que ele regia com o próprio corpo às diversas partituras. Não via os outros, só o maestro, o professor. Ela entendeu que o corpo podia ser uma poesia. Ele era uma poesia.

Viciada, ela passou a ser a mais assídua frequentadora da praça e do maestro. Cada movimento do corpo do rapaz alterava o funcionamento do corpo dela, estaria sofrendo de alguma moléstia incurável?

Dois meses depois, voltando prá casa depois de sorver sua dose de ópio diária, ela entrou em um centro espírita e perguntou a um pai de santo, é possível que alguém possa ser incorporada por uma entidade poliglota sem o menor controle sobre suas atitudes? Ele assentiu, é possível.

Naquele mesma manhã, a moça tímida, recatada e séria esperou o fim do concerto, aproximou-se do maestro com um suave trejeito de dançarina e perguntou-lhe, o senhor entende inglês? Ele respondeu intrigado, não. Ela sussurou, I love you. O senhor fala francês? Não, ele repondeu e ela translúcida balbuciou, Je t'aime e espanhol, fala? Não, disse ele, então, replicou ela, Yo te amo. Mas o senhor certamente sabe ler partituras? Ele disse, é evidente. Ela o olhou profundo, levantou os braços melifluamente e dançou pela praça como se fosse uma poesia.