domingo, 19 de dezembro de 2010

O HÓSPEDE




Quase todo mundo já foi hóspede de alguém, quase todo mundo já anfitrionou alguém. A relação hóspede/anfitrião, em geral, resulta na inevitável desmistificação do outro. É a devassa mútua. O hóspede vê coisas incontáveis, o anfitrião também. Ambos são vítimas do olhar do outro, da observação velada, das falsas gentilezas e quiçá da antipatia eterna.

O hóspede é um ingrato por natureza, ele vai, ele precisa ir para a casa do outro, mas sente ódio. É ódio de quem não lhe fez nenhum mal. As razões? Várias, entre elas a impossibilidade de pagar um hotel e prescindir de favores. O ódio é de si mesmo, que ele, impiedosamente, projeta no anfitrião. Por outro lado, ele cria para si a patologia da exceção. Mesmo sendo consciente dos problemas inerentes à hospedagem, o hóspede se julga diferente de outros hóspedes. Ele desenvolve a retórica da auto-defesa para negar sua imprudência. Ele é discreto, passa como um fantasma, ninguém percebe sua presença. Já ouvi coisas da seguinte ordem:"todo mundo me quer como hóspede, entro e saio sem deixar vestígios". Que presunção!

O fato é que tudo está na mais perfeita ordem quando toca o telefone: "posso passar uns dias aí? não se preocupe comigo, não te ocuparei, continue sua vida normal". Essa vozinha demoníaca soa como um tiro na cabeça da vítima. Em geral, vem com a pergunta, tá sol? Vem mesmo, diz o suposto anfitrião. Que alegria!!! Mentira soberana. Ele já sabe que está fadado a sofrer de desordem mental, a ter gastos inesperados, a encarar o ódio da empregada doméstica (quando há), à antipatia do filho que vai ceder a cama (quando não há quarto de hóspede, que ironia), a enfrentar ira do cachorro que passa a mijar pelos cantos da casa, a lidar com a cara de cão do marido (essa aparição de novo?), é o caos anunciado.

Na chegada a representação de ambos é perfeita. São abraços, beijos, alegria, presentes (um queijo), as novidades. Tudo isso se resolve em meia hora. A partir daí começa a contagem regressiva para a sublime despedida. A dobradinha hóspede/anfitrião não funciona. Entre os dois há um fosso abissal, intransponível. Hóspede quer dormir, filho do anfitrião quer ouvir pagode, hóspede demora no banho, anfitrião pensa na conta de energia elétrica, hóspede pendura no telefone, anfitrião surta, hóspede come adoidado, anfitrião pensa em envenená-lo, hóspede intromete nas discussões domésticas, anfitrião implora aos filhos respeito, hóspede levanta as tampas das panelas, anfitrião baba de antipatia, hóspede atende ao telefone de cobradores, anfitrião se explica, hóspede descobre segredos, anfitrião jura vingança. E vinga

Na primeira ausência do hóspede, o anfitrião chama os familiares ao telefone e relata o infortúnio, o castigo, a presença do Anjo da Morte em sua casa. Comenta todos os deslizes do hóspede, que vão da hora que levanta com sua "roupinha ordinária", a hora que deita esquecendo uma escova de dente arreganhada no banheiro. Conclama os 'chegados' a tramarem um plano para se ver livre da figura nefasta ( isso até com um grande amigo de outrora), pensa em assassinato, uma simulação de assalto, sustinhos sobrenaturais. Ou até o plano simpatia, promovendo passeios intermináveis sob o sol de canícula ou visitas a museus particulares. Tudo é válido para extenuar o intruso. Outra técnica boa para colocar o hóspede na rua é relembrar coisas horríveis de sua vida particular, melhor ainda se for a hora do jantar. "E aí? sua mãe ainda gosta de umas biritas? e aquele seu primo drag queen, fazendo sucesso? olho para você e me lembro quando seu marido te largou por outra, ainda estão juntos? têm filhos? E você continua com seu tratamento contra furúnculos nas nádegas? ops...desculpe-me Queridinha, não queria te relembrar coisas tristes". Ai, ai...

Não tem jeito. O hóspede, aparentemente, não se toca, ele tem interesses maiores, não pode se levar por bobagens. Enquanto isso, macabramente, armazena a ira que ao longo da estadia é municionada barbaramente. Basta colocar os pés fora da casa que o recebeu para jogar pedras. "Que casa maldita, que filharada horrorosa, essa idiota mora na região mais feia da cidade, comida ruim, povo sem classe, marido sem-vergonha, familiazinha de cornos, empregada suja, colchão de crina de cavalo, chuveirinho mequetrefe, credo...nunca mais essa turba ignara põe os olhos na minha adorável pessoa".

Mas o tempo apaga tudo. Chega o próximo ano e a situação inverte. "Oi Linda, posso passar uns dias com você, nessa cidade dos sonhos? Ano passado eu nem pude te receber, como sua augusta pessoa merece.Você sabe que eu, nem os meninos, te incomodaremos." E começa tudo outra vez.

Dever favores, dívida maldita. O pagamento em geral é feito com juros extorsivos, nele vem embutido coisas indizíveis, sem preço. Mas a vida é assim, a cada dia que passa tenho a certeza, prá lá de absoluta, que gente odeia gente. Assunto encerrado.



sábado, 11 de dezembro de 2010

SEM PALAVRAS




Há estórias que a gente conta e até Deus duvida. Essa aconteceu comigo e tenho uma testemunha. Estava eu de conversinha com minha amiga Andréia sob uma árvore de uvaia adornada com uma solitária frutinha remanescente da colheita. Nas grimpas. Aos poucos fui sentido um torpor inebriante, uma mareada salutar. Era o aroma da uvaia desemparceirada. Ele descia pelo caule fino da árvore e me envolvia sem dar lugar a qualquer contestação. O autoritarismo do aroma é como o da música, escorre pelas portas trancadas, pelas janelas cerradas, pelas grades de ferro, pelas cercas elétricas e exercem seu poder absoluto. Para livrarmos deles temos que perder alguns dos sentidos. São os donos do castelo.

A certa altura já não sabia como estava me portando com minha amiga, escutava ao longe sua voz, mas meu mundo era outro. A uvaia e aquele aroma tão peculiar me arrebataram por uns instantes da realidade. Eu me via correndo totalmente envolta no sortilégio da fruta. Por onde eu passava as pessoas eram contagiadas pelo aroma entorpecente que exalava do meu corpo. Percebi que uma paradoxal pequena multidão corria atrás de mim enlouquecida pelo meu rastro perfumado amarelo-ouro, se aroma tem cor. Delírio.

De súbito voltei a mim e continuei a conversar com minha amiga, acho que ela não notou minha saída do ar. Foi aí que aconteceu o inusitado. Passou correndo por nós um rapaz jovem. Eu, sem pensar, falei, ei moço apanha aquela fruta lá no alto para mim? Ele me olhou e de um salto sem nada dever aos felinos venceu os tímidos galhos da árvore apanhou a uvaia, desceu na mesma rapidez e me a entregou, como se a uvaia fosse uma camélia e eu a dama.

Com a uvaia na mão busquei em algum lugar dentro de mim um única palavra para dizer ao jovem. Confesso que poucas vezes as palavras me desafiam, mas naquele momento vivi onde as palavras são prescindíveis. Ele partiu e eu tenho a uvaia para sempre como o símbolo do gesto singelo imprescindível para se viver neste mundo. Andréia apenas sorriu.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

VINGANÇA A PRIORI




Há mulheres que naturalmente têm classe e glamour, são poucas. Trazem esse dom no nascimento, invejável. Elas são a expressão do fino trato, da delicadeza de espírito, do sorriso na hora certa, da voz doce e suave, das boas maneiras em todos os lugares e sentidos. No entanto, isso não lhes garante privilégios na vida, o lugar privilegiado que ocupam é o da memória, da lembrança inesquecível, da referência do charme, de serem invocadas quando as vulgares entram em cena.

Essas mulheres têm uma particularidade muito especial. Mesmo sem se progamarem para tal, elas se vingam "a priori" das vicissitudes da vida. Elas deixam sua marca indelével por onde passam, deixam saudades ainda que preteridas, são o exemplo citado da elegância do comportamento quando, reiterando, o torpe e o grosseiro pedem passagem.

Ser uma dessas mulheres é uma dádiva do divino. Quem não tem encantos inesquecíveis pela própria natureza, deve construir dentro de si estratégias comportamentais para entrar nessa abençoada tribo.

Vamos convir que é uma vingança e tal deixar de ser a rainha, mas não perder jamais a majestade. Para poucas.

sábado, 13 de novembro de 2010

DÁ-SE




Lá ia eu toda cheia de alegria no coração, andando pelas ruas da cidade, quando deparei-me com uma placa defronte a uma casa escrita: dá-se. Aquilo pareceu-me inusitado, jamais havia visto algo assim. Aluga-se, vende-se, isso está prá toda parte, mas dá-se? Tinha que ver isso de perto afinal, não era uma casinha qualquer, era uma casa linda, grande, no alto de uma pequena colina gramada com pequenos jardins coloridos salpicando o verde escuro da grama, manchado de inúmeros outros tons de verde. Parei o carro, desci calmamente e fiquei por uns minutos admirando aquele primor. Pensei, será que estão dando essa casa? Claro que não, estou vendo coisas.

Eis que senão quando uma senhora abriu a porta, desceu pela pequena colina e muito delicadamente perguntou-me se eu queria visitar a casa. Atônita pensei, morri e não me dei conta, isso não podia ser do mundo dos homens, mas era. Entrei meio amedrontada, mas já tendo pouco a perder, encarei o insólito. Não que eu goste de surpresinhas, nem curiosa sou, mas segui a senhora que andava tão levemente que tive a nítida impressão de ser uma alma do outro mundo.

Quando entrei na casa fiquei maravilhada, era tão linda, tão linda que igual eu nunca vi. Perguntei a ela se a placa estava errada, indignada ela apenas me olhou com um ar de espanto. Essa casa está para ser dada a quem quiser, você a quer? Já sofrendo de nanismo na voz balbuciei, a senhora vai me dar essa casa? Sim, respondeu a boa alma e sorriu. Conformada por estar travando uma amizade com seres do Além, entrei no jogo. Quero. Definitivamente eu queria aquela casa. Calmamente a senhora entregou-me as chaves e levou-me para conhecer o resto da casa. Aquilo era a materialização da imagem onírica do belo. Indescritível. Nesse momento, com as chaves apertadinhas dentro de minhas mãos proprietárias, ofereci como cortesia aos psicanalistas esse meu ato de insanidade. Aceitei a casa.

Depois das devidas apresentações dos espaços da casa, a Alma dirigiu-se ao portão de entrada enquanto e me informava como deveria cuidar da casa e dos jardins. Fiquei um pouco aflita imaginando como eu poderia manter aquilo tudo, mas atrevida que sou pensei, dou um jeito. Quando ela atravessou a rua à guisa de partir e deixar-me com uma casa no alto da colina, com jardim verde e colorido, apavorei. Senhora, gritei, isso não é uma brincadeira,é? A senhora acha que vou aceitar uma casa dessas de uma pessoa que não sei quem é, assim como a senhora não sabe quem sou? Com um olhar de comiseração pela minha insegurança frente ao "fora do comum", ela falou: "a casa é sua minha filha (não gostei, mãe eu já tenho), a única condição que imponho e que já ia me esquecendo é que você terá que desfrutar da casa sem contar para absolutamente ninguém. A cada tres dias virá uma pessoa para que você lhe dê a lista do supermercado e o que mais precisar. O silêncio é a única condição para a casa ser sua, em um ano eu voltarei para saber como anda". Virou-se e foi embora.

Um ano depois...

Minha vida transformou-se, foram os melhores 365 dias de toda a minha vida. Na minha casa eu era plenamente feliz, vivi plenamente sem a interferência de qualquer pessoa, todos os dias foram rigorosamente comandados por mim. Uma semana depois do primeiro ano, aquela senhora apareceu numa tardinha. Cumprimentou-me pelo esmêro que a casa foi mantida e sobretudo pelo meu silêncio, até então nem aos amigos mais chegados eu mencionara aquele sonho que estava vivendo, na mais linda casa no alto da colina. E assim continuei por mais alguns meses, quando amaldiçoadamente contei a uma pessoa de extrema confiança o que estava acontecendo comigo. Essa pessoa não conseguiu guardar o segredo e comentou com outra e essa com outra e mais outra, até que a metade da cidade sabia da estória.

Começou o meu calvário. As perguntas e insinuações a respeito da "casa dada" foram as mais criativas possíveis. Até no narco-tráfico fui acusa de estar envolvida. Talvez um amante bem velho, uma maracutaia a ser descoberta, desvio de dinheiro público, qualquer coisa menos "uma casa dada". isso sem contar os risinhos perversos nas horas perdidas em especulação sobre o real dono da casa. Bem, perdi a casa, depois de romper voluntaria e estupidamente o pacto com a senhora. Uma alma? Não sei.

Quem porventura ler essa estória saiba que não é uma ficção. Aconteceu comigo. A casa está no mesmo lugar com a placa "dá-se". Fiquei sabendo de duas coisas, a primeira é que essa casa vem sendo dada e tomada de ano em ano. A segunda é que assim como o átomo, a felicidade é indivisível. Tem uma terceira que aprendi, todas as vezes que julgamos alguém, inevitavelmente erramos. Eu também errei, julguei a senhora e me esqueci da marca humana. Imperdoável.

Acredite se quiser!

domingo, 3 de outubro de 2010

OS OLHOS DO BURRINHO



Uma certa manhã de domingo, minha filha e eu acordamos com um choro muito forte que mais parecia de um animal que de um ser humano, e era. A tragédia ocorreu à porta de nossa casa. Um carro em alta velocidade atropelou um burrinho, que não sei por qual desventura estava bordejando em plena avenida. O animal não morreu, mas teve as quatro patas quebradas e jazia no asfalto, deixando para os homens, em forma de gemido, toda a dor que sentia no seu último suspiro neste mundo. Corremos prá rua em desabalada carreira para dar o último alento ao jovem muar. Valeu a pena.

Minha filha limpava o sangue que escorria de sua boca como as águas inocentes correm sobre o leito do riacho. Dali ela tentava amenizar o estrago nas pernas, fazendo massagens e gritando por socorro. "Alguem chame alguem pelo amor de Deus". Enquanto isso o burrinho agônico sofria espasmos de dor, chorando em voz alta, pedindo clemência, que fosse um tiro de misericórdia no coração.


Foi nesse momento que me aproximei. Confesso meu acovardamento mediante situações da dor do outro, minhas pernas me faltam, meu coração dispara e só tomo atitudes se não houver alguem para fazê-lo. Não era o caso, a rua estava cheia de curiosos inoperantes como eu, que ora excomungavam o motorista irresponsável, ora pediam por um revólver para sacrificar o pobre animal. Não sei bem o que se passou comigo, mas fui fortemente atraida para perto da cabeça do burrinho. Quando me achegava percebi que algo insólito estava acontecendo comigo. Senti os olhos do animal me fitando com uma intensidade que jamais senti nos humanos. A força era tão grande que me ajoelhei perto da cabeça do animal e fiquei, como que hipnotizada, totalmente fixada naqueles olhos negros quase sem vida.

De mansinho o burrinho virou o pescoço para frente e colocou a cabeça sobre meus joelhos. Trêmula comecei a cantar uma velha cantiga de ninar acrescentando ao canto um leve passar de mãos em seu ensaio de crina. A cena demorou não mais que 15 minutos, ele morreu. Agora quem sofria, com a intensidade que a perda provoca, era eu. A comoção foi geral, alguns mais sanguinários pediam o linchamento do motorista/assassino, outros, os moderados, só queriam lhe dar uma inesquecível surra, os sensíveis, se organizavam para preparar as exéquias do finado com toda a pompa que o acontecido demandava. Eu, cerrei-lhe os olhos.

No tempo que se seguiu a este triste episódio observei que em situações de tensão os olhos do burrinho apareciam para mim, palavra que os via com nitidez, não era sonho, não era fantasia, e menos ainda loucura. Só no olhar eu me acalmava, aquele par de olhos passou a ser um bálsamo e também um talismã. Invocava os olhos do burrinho e lá estavam eles, sempre a postos. Tomada pelo alívio eu cantava a cantiga para que ele se sentisse protegido, muitas vezes os olhos dançavam a minha frente, sempre juntos. Esse foi um segredo que jamais revelei, afinal ninguem acreditaria no caso, em que pese sua normalidade.

Um dia, muitos anos depois, fui passear em um dos parques de minha cidade, quando deparei-me com uma porção de burrinhos puxando pequenas charretes para passear com as crianças. Cheguei perto do rapaz que alugava os animais, contei-lhe do atropelamento e da tristeza gerada pela morte de tão inofensivo animal. Comovido o jovem falou: "ah aquilo foi um vacilo meu, soltei-lhe a rédea e ele escapou pela avenida, aquele burrinho era nosso mascote, sempre vinha a frente de nossa tropa, ele nasceu sem os olhos, era cego.

Sai caminhando sem rumo pela parque quando percebi algo me seguindo. Eram os olhos do "meu burrinho", o do moço não tinha olhos, nem alma.

sábado, 2 de outubro de 2010

AFORISMOS




Homem de transição é aquele que aparece para nos salvar de uma dor de amor, fica um tempo, alivia a dor e dá lugar para outro amor.

Amigo é coisa para se guardar e também se resguardar. Há poucos.

Sorrindo as pessoas são lindas, chorando também. Tudo depende do momento e da cara, é do óbvio.

Sexo é fundamental em um relacionamento, mas não preenche todos os espaços.

Quem jura pelo outro, jura em falso.

O outro é perdido mas quem não o é?

A vaidade é o pior da natureza humana, a virtude é não demonstrá-la jamais.

A pusilanimidade pode ser blindada pela sabedoria do silêncio.

Um olhar é apenas um movimento ocular, mas pode ser tão mortal como um tiro de revólver.

Quem conta um caso igual ao que acabou de ser contado é um redundante.

Rebater uma boa piada com outra há de ter talento, do contrário o escárnio é fatal.

Todo mundo gosta de falar mal dos outros, poucos assumem essa alegria.

Moça bonita paga caro, mas ainda assim prefere a dívida.

Homem conquistador não pode envelhecer, tem que se matar antes.

A pior sedução vem da criança, ela escraviza os adultos.

Fazer desaforos para as pessoas é um ato de valentia, principalmente quando eles são relatados e não vividos.

Chorar não é sinônimo de sensibilidade, mas certamente é mais uma maneira de manipular o outro.

Nenhuma expressão facial tem um só significado, serve para o Bem e o Mal.

As respostas, em geral, não têm compromisso com as perguntas. Pergunte o mínimo.

Perguntar já sabendo a resposta retrata um inconformismo ou maldade.

O maior mentiroso do mundo é o espelho, ele nunca reflete o real para quem está a sua frente.

Tomar decisões na vida é tão difícil que o melhor é terceirizá-las.

DESAPRENDENDO A VIVER




Fantasias e mais fantasias, chego a pensar que elas são a seiva da vida. Não há quem não se alimente de alguma fantasia ou melhor que não priorize pelo menos uma. Há algum tempo eu tenho uma recorrente que reflete no resto do meu dia como uma esperança de milagre. Eu queria muito desaprender a viver. Acho que sei viver, acho que já aprendi, mas queria muito desaprender esse conhecimento. Aprender a viver é uma sabedoria que só serve para sobreviver nesse mundo. A fantasia é a sabedoria mais eficaz, ela nos poupa dos violentos impactos com a realidade da vida.

Quando estou nesse abençoado devaneio, esqueço as malvadezas do mundo. Não preciso estar atenta aos mísseis que podem vir de direções mais inesperadas. Não escuto aquela vozinha mansa, mas impregnada do veneno mais letal. Não percebo aqueles olhos que fincam ao invés de olhar. Não ouço uma calúnia sem provas, que com o tempo se torna uma verdade incontestável. Não me dou conta que aquelas palavras doces, são meras ironias maledicentes. Não enxergo naquele sorriso afável, o mal e a perversidade. Não detecto olhares cruzados, que detonam mais que qualquer palavra ou ação. Não entendo comentários picantes. Não descubro as inconfidências de meus confidentes. Passo impune pelas tantas humilhações e ofensas, que nas suas formas mais sutis. Sou alheia ao mundo.

Quando estou resguardada pela fantasia, sou a personificação da felicidade. Queria morrer na mais absoluta ignorância, para que saber viver, para que saber de "coisas", para que ter conhecimentos?  Isso tudo é em vão, só vale para saber que desaprender a viver e saber de nada, é voltar à inocência perdida e ser genuinamente feliz.


sexta-feira, 24 de setembro de 2010

IMPOSTORAS POR UM DIA, ADRENALINA A MIL








Ser estrangeiro é viver em um raro estado de espírito, é ser livre dos olhares dos compatriotas, é não ter compromisso algum, é não ter medo de nada, é ser inocente por um tempo, é respirar a liberdade, liberdade total. Ser estrangeiro é viver intensamente, pelo menos por um tempo. Entendam que estou falando daquelas pessoas que conseguem ser estrangeiro naturalmente, que dão conta de relegar às próprias referências para um segundo plano e absorver o diferente, o outro, sem preconceito. É sair de casa (home) sem abandoná-la mas também sem levá-la na bagagem. Isso é possível.

Foi assim que eu e uma amiga fomos parar na casa de uma família muçulmana na Cidade do Cairo. Nosso agente de viagem, rapaz esperto que igual eu nunca vi, armou um ardil para que nos dessemos bem na empreitada rumo à África. Contou-nos que tinha um vizinho egípcio chamado Omar e sabia o telefone e endereço da família dele no Cairo. Quando perguntamos qual era a vantagem em saber um nome e um endereço, ele sugeriu: "telefonem para o irmão dele e digam que são amigas, vizinhas, chegadas do saudoso Omar. À época Omar estava em Miami e o golpe seria perfeito. Viveríamos a experiência única de visitar uma família egípcia. Fomos.

Aquilo que a princípio não cogitamos, de procurar os Mahamed, tornou-se uma necessidade quando chegamos às 3 da madrugada na cidade. Pegamos um táxi e pedimos ao motorista que nos levassem a um bom hotel. O homem dirigindo em alta velocidade, com cara de cão, virava o corpo inteiro para trás nos pedindo dinheiro aos gritos: "money, money"'. Minha amiga apavorada me implorava: "dá Maria, dá pelo amor de Deus, esse homem vai nos matar Maria", ela trata todas a amigas pelo nome da mãe de Deus. Não dei. Àquela época eu era destemida, coisa que hoje não sou. O desvairado nos deixou em um hotel lindo, era música, homens, mulheres, uma alegria. Com pouco tempo, já no quarto, nos demos conta que aquela festa toda era meio estranha em pleno Ramadã (tipo a Quaresma da religião católica, seriamente respeitada no mundo islâmico). O hotel não era bento. O jeito era pedir ajuda ao irmão de Omar.

Ao dia seguinte telefonei para o irmão de nosso amigo Omar. Ele estava dormindo mas foi gentil. Falou que aquele hotel não era para mulheres e que fôssemos para o Hilton imediatamente. Depois de instaladas demos uma volta pelo centro da cidade e ....rumo às pirâmides. Depois conto as aventuras no deserto. À noite telefonei para o homem para agradecer e ele muito solícito nos convidou para jantar na casa da família. Só a título de explicação, durante o Ramadã os muçulmanos fazem jejum absoluto entre o nascer e o pôr do sol. Quando o ocaso está próximo o país vira uma loucura, as pessoas famélicas correm pelas ruas para chegar em casa e comer até o sol raiar. Nós, estrangeiras, fumávamos, bebiámos e comiámos sem despertar a menor inveja nos devotos, Ramadã é Ramadã, menos no nosso primeiro hotel. À noite nos demos conta que também na boite do Hilton o Ramadã era relaxado, o som rolava solto, vimos muitos homens dançando com homens, só dançando.

Lindas na porta do hotel recebemos nosso anfitrião vestido à americana, calça jeans, tênis e uma bela Mercedes Benz. Começou o teatro. Falou do irmão o tempo todo e nós não sabiámos nada do Omar, nem da família, nem do negócios. Nosso agente foi falho nesse ponto. Chegamos à casa e lá estava toda a família nos esperando com mil abraços e beijos. Perguntavam por nomes e detalhes que provocaram o temor em minha amiga de sermos descobertas. Foi uma loucura. A cada pergunta ela, meio desfalecida, gemia: "confessa Maria". Relutei até o fim, não confessei. Respondi o irrespondível. Passamos a noite esperando a hora da descoberta e do crime ou prisão. Minha amiga já se via na cadeia em plena cidade do Cairo, tinha lágrimas nos olhos. Grande experiência, pelo menos inesquecível.

Veio o jantar, 22 pratos, eles intercalavam a comida com cigarro, uma festa. O Ramadã? Só com o nascer do sol reiniciaria. Comemos de tudo, até uma perereca frita que depois soubemos que era pombinha nênem, que delícia! Sei que nos adoraram pelo tanto que riam, que nos olhavam com olhos amáveis e comentavam em árabe coisas simpáticas a nosso respeito, entendo um pouco daquela língua. Um dos irmãos eu achei parecido com o Gandhi, segundo o irmão, um gozador, ele parecia era com a Indira Gandhi. Todos riam mais que a situação demandava.

Saímos dali com o coração cheio de alegria, mais de 30 fotos, cartas para a família brasileira, o plano tinha dado certo. Ao chegarmos no Brasil, minha amiga tomada pela culpa cismou de procurar Omar e confessar o crime. Fomos. Omar, a simpatia personificada, ria a "piernas sueltas", na carta o irmão lhe dizia que não mandasse todos os brasileiros que fossem ao Egito procurá-los, falava que nós éramos umas amigas muito simpáticas mas estranhas porque nem o nome de Irene, mulher de Omar, nós não sabíamos e que o irmão, um muçulmano de carteirinha, um filho de Tutankamon convicto, foi confundido por mim com Indira Gandhi, uma ofensa religiosa. Omar ria e nos contava estórias de sua vida e de seus irmãos e cunhadas. Sua vida foi uma aventura, maior que a nossa, mas será que com tantas emoções?

Meu conselho: visitem o Egito, é terra de gente muito hospitaleira. Tenho amigos lá....


































































domingo, 19 de setembro de 2010

CIÚME: SENTIMENTO INÚTIL E PERVERSO



Desse mal eu já não padeço há muito. Infelizes dos que estão tomados por esse terrível sentimento que, sem a menor sombra de dúvida, é o detonador número um da alma humana. É por ciúme que as intrigas e calúnias fecundam de forma incontrolável, é por ciúme que irmãos e grandes amigos brigam para sempre, é por ciúme que as pessoas difamam as outras, é por ciúme que as pessoas matam e depois têm a vida inteira para se arrepender. Muitas vezes o ciúme é confundido com a inveja, fiquem atentos, ciúme e inveja são as faces de uma mesma moeda.

Aprendi a ter controle desse sentimento quando me dei conta de sua inutilidade e periculosidade. Não há absolutamente nada que a gente faça, movida pelo ciúme, que mude situações incômodas. O ponto delicado do tema é que o ciúme tem suas próprias regras e elas são sempre indignas.


No âmbito familiar, se houver um ciumento, a coisa fica mal parada. Começam as intrigas, os venenos, as maldades, as ironias, os comentários desnecessários e, para completar, as mentiras, prática muito usada pelo ciumento. As mentiras, metralhadora acionada pelo ciumento, são armas letais nos relacionamentos familiares. Para se obter a confiança do outro ou de alguns, o ciumento constrói uma rede de calúnias e maldades impossíveis de pronto desmascaramento. Ele inventa situações absurdas para referendar e conferir veracidade às suas maldades. É o veneno permanente que atua nas fragilidades das pessoas que o ciumento controlador quer para si próprio com exclusividade. Para atingir seus fins, o ciumento não deixa pedra sobre pedra, ele age impiedosamente.

Minha perplexidade reside no fato de que as pessoas cortam relações sem sequer pensar na possibilidade de promover uma acariação entre as partes implicadas. Trata-se de mentes sectárias por um lado e pusilânimes por outro. Sabemos que muitas vezes as pessoas optam por não ouvir outras versões do que lhe é contado por medo das revelações a enfrentar. Podem estar dormindo com o inimigo. Eu conheço essa história de irmão jogar uns contra os outros. A minha pergunta é: o que se ganha com isso? Não sei, mas sei que tem gente que trabalha bem na medieval arte de envenenar. Fujam dos venenosos. Seu poder de disseminar o mal em nome do bem é invencível. Só o tempo coloca as coisas nos devidos lugares. Lamentavelmente o tempo do tempo nem sempre coincide com o tempo dos homens. Pode ser tarde demais o desmascaramento daquele que desvirtua a realidade dos fatos para se tornar o soberano absoluto em um núcleo familiar em detrimento dos outros.

Nas relações de amizade a figura do ciumento que se interpõe entre amigos é muito comum. Está tudo bem até que um dia seu amigo fica estranho, depois se afasta e daí a 10 anos você descobre que ele foi envenenado por alguém que por ciúme da amizade feliz, injetou-lhe o líquido venenoso na veia. É fatal, não tem saída. O mal vem como avalanche e salve-se quem puder. Grandes amizades foram destruídas por obra e arte do ciumento. As estratégias são infinitas. Vai desde uma simples conversinha até os mais elaborados ardis. Deus nos livre dessa interferência enferma que costuma roubar-nos a paz e o melhor amigo. Uma infâmia.

O ciúme clássico é o que permeia as relações amorosas. Loucura desvairada e sem cura. Alguns definem o ciúme como falta de auto-confiança. Sei lá, só sei que uma pessoa ciumenta deve ser descartada imediatamente, corram dela como o diabo da cruz. Pena não haver um sensor para avaliar o grau de ciúme do indivíduo e um outro mais poderoso para detectar a hora do ataque do ciumento. As pessoas ciumentas deveriam ser tratadas como doentes mentais. Em geral, o ciumento manda a razão passar férias bem longe para que ele possa agir no desvario da doença. Essa doença tem como característica a potencialização máxima dos sentidos. O doente escuta coisas, vê o que ninguém vê, sente perfumes inexistentes, lê pensamentos, enfim são 24 horas em estado de alerta. Haja coração. Será que vale a pena?

Esse mal atinge seu máximo se houver um rompimento da relação. Nessa hora o ciumento surta. Ele vai à loucura. Ao invés de ter a honrosa saída sem olhar para trás, ele faz o mais triste papel de sua vida. Torna-se o objeto de escárnio do outro. E tudo por qual razão? Nenhuma. Basta esperar o tempo passar que se dará conta de que o silêncio é o discurso mais eloquente e mais elegante. Perder a categoria por paixão é no mínimo pouco inteligente.

Enfim, o ciúme é um sentimento perverso, nada se constrói de positivo e a longo prazo ganha-se muito pouco ou nada.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Novo Índice

Olhem as entradas novas, elas aparecem antes da poesia Minhas Meninas.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

MENINAS, MINHAS MENINAS









Tenho tres filhas mocinhas
Cada uma com seu cada qual
Digo que são minhas meninas
Gosto delas por igual.

A primeira se chama Priscila
Tem os olhos da cor do mar
Quando sorri é uma graça
Que a todos faz encantar.

A segunda é a Rachel
Essa até filhos já tem
Quando se põe a falar
É um bálsamo para a alma curar.

A terceira é a pequena Paula
De todas, como é diferente
A cada dia que passa
A florzinha me surpreende.

As tres juntas são o meu alento
Para os dias eu não ver passar
E quando nelas deito os olhos
Sinto que vão marejar.

Adoro minhas meninas
Só minhas eu sei que elas são
Cada vez que uma aparece
Bate, bate meu coração.

Saibam meninas que Deus
Quando resolveu me agradar
Mandou uma a uma por vez
Para minha vida adornar.

Meninas, minhas meninas
Se algum dia eu as magoei
Saibam que mãe é assim mesmo
Por isso já me penitenciei.

Meninas, minhas queridinhas
Das três não sei qual é a preferida
Dileta é a mais velha, a do meio?
A menor, todas são escollhidas.

Meninas de minha menina

No dia que Lara nasceu
Todo mundo chorou
Com seus olhinhos pingados
A família conquistou.

Aí chegou a Estela
Pom Pom não se aguentou
Cansada da choradeira
Foi cair na bebedeira!

As duas meninas, que lindas!
Da mais pura linha, princesinhas
A cada dia uma estória
Viva, viva as paulistinhas.


Um menino

Um menino, da família o primeiro varão
Mais lindo que um príncipe, o nenêm
Será o mais reverenciado, que dúvida
Vou morrer de tanto lhe querer bem.

Escute bem pequeno Tom
Sempre te darei razão
Mas se às meninas aprontar
Vai tomar um bom sermão.

Já pensou Larinha racional?
Sabidinha como nunca vi igual?
Argumentará com precisão
Mas não implique com ela não.

Estela correndo para cá
Você atrás dela para lá
Alcance-a meu lindo bebê
Não deixe a menina vencer.

Trio perfeito, trio meu
Até parece que perdi a razão
De longe só sei por ti rezar
Trio lindo do meu coração.







A E I O U....é o que tenho para dizer





Isso lá é verdade, os homens são de poucas palavras. Há os que falam muito, exceção da regra. Já as mulheres são bem falantes, algumas exorbitam e se dedicam a alcançar a incontinência verbal, falam muito nos dois sentidos. O ideal seria uma média, homens e mulheres falando com parcimonia. Os extremos em si trazem o problema, se o palavrório desenfreado é irritante, o poucas palavras também o é. Vou contar uma história de uma moça que no reencontro com um amigo e mais tarde com o marido, descobriu que alguns homens só sabem falar em vogais.

A moça toda radiante encontrou um amigo que pelo visto não via há muito tempo, o encontro foi patético. Ela de braços abertos gritou: meu amigo, cadê voce?
- Aí . Sem festa alguma ele respondeu.
- Tudo bem? disse ela.
- É, respondeu o moço.
- Sumido hein?
- Iiiiiii, murmurou o tonto
- Ainda está com a Juninha?
- Uh, ironizou ele. Imagino que uh significa "acorda idiota".
- E a vida está boa? Insistiu a insistente.
- Uuuuu, foi a resposta efusiva.
- Trabalhando?
- É, ué.
Sentindo a indigência do diálogo ela despediu, prazer em vê-lo, voce está ótimo.
- Óóóó, saiu ele balançando a cabeça com um andar de urubu malandro dando tapinhas na orelha.

Chegando em casa ela encontrou o marido sentado no sofá, com o "rosário laico na mão" (controle remoto), hirto, olhos parados na TV.
- Bem, disse ela graciosamente, encontrei o Zé da Juninha.
- É? repondeu com desdém o tradicional marido brasileiro.
- É e está careca, sabia?
- Iiiii, falou ele passando a mão na própria calvice.
- Nem perguntou por voce.
- Oi?
- Sim, não perguntou por voce.
- Aaa , falou ele sem tirar os olhos da TV.
- Quer comer agora? Nada, silêncio. Quer comer agora?, gritou desesperada.
- Iiiii, rosnou o marido.
- Eu sei que sou uma chata mas voce poderia me responder, seu cafajeste.
- Ó, vociferou ele levantando a mão ameaçadoramente.
- Bate, urrou ela, bate covarde.
- Ai ai ai, replicou o vogático impaciente, ostentando aquela cara de imbecíl típica dos monossilábicos.
- Bate, insistiu ela tomada pela ira.
- Iiiii, ecoou ele.
- Vai tomar banho? Vociferou ela com cara de nojo.
- Uuuuu, concordou ele com os olhos risonhos e sedutores.

Acalmada ela provocou, vamos ali? Levantando do sofá ele encaminhou-se para o quarto e sentou-se na cama desabotoando a calça.
-Voce quer? alegrou ela depois de uma sêca de 2 meses.
- Ééé, respondeu ele com um sorriso besta afivelado na boca.
- Então vamos, comemorou ela.

Depois de meia hora de bate bola ele exaurido a olhou com um ar de desânimo e para sua questão meridional com uma cara de "pois é". Abanou a cabeça e continuou a olhá-la que sorria e a plenos pulmões fez à moda da turba ignara depois de um gol contra na decisão do campeonato, uuuuuuuuuuu, até perder a voz, gritou em silêncio.

Há pessoas lacônicas, outras abusam do vernáculo, poucas são impecáveis na interlocução, mas os A E I O U são os melhores, só eles têm a consciência de não terem nunca algo a dizer. UIUI!










sexta-feira, 23 de julho de 2010

ENCRUZILHADA: A PALAVRA PROIBIDA












Quando eu ainda não tinha acesso aos dicionários e nem coragem de perguntar aos meus pais o significado de todas as palavras e palavrotas que ouvia, havia uma que me perseguia, que me feria os ouvidos: encruzilhada. Eu não sei se era o som, o momento que era proferida, sempre emitida por bocas tensas, se sentia medo do seu possível significado ou se a associava com a bifurcação danação/salvação, não sei. Para me defender da maldição da palavra, resolvi que não a repetiria jamais e essa seria daquelas palavras a ser referida como a "proibida". Pois bem, essa macabra combinação de sílabas ficou gravada de forma indelével no meu inconsciente como sinônimo do mal, do mal absoluto.

Hoje eu sei o significado da "palavra" e confesso, continuo a temê-la e ao temor ainda agreguei o ódio. Decididamente eu não convivo em harmonia com a "proibida" e não sei como livrar-me dela. A cada dia amanheço diante de uma "proibida" que bifurca, trifurca e quatrifurca, isso quando não polifurca. A vida é uma proibida. Não sei se vou ou fico onde estou. Ficar significa uma resistência ao novo, ao desafio e até mesmo a uma possível felicidade maior. Ir é o inverso. Vou, tenho que ir. Em diversas situações de confronto com a "palavra", fui e em 100% das vezes que fui, me dei bem. Nesse aspecto temos que seguir o poeta, não sabemos qual estrada tomar, mas há de tomá-la.

Decisão certa ou errada é uma questão para depois. Ah, importante é saber que ficar também é uma decisão.


O CAMINHO NÃO PERCORRIDO

Robert Frost

Num bosque de folhas amareladas
Dois caminhos havia e eu não podia
Ser dos dois caminhante
Fiquei ali a concentrar me num deles
Olhando fixamente até perdê-lo de vista
Nesta curva da folhagem distante

Mas foi pelo outro que fui
Igualmente bom, até certo ponto talvez melhor
Porque cheio de erva e a pedir que o usassem
Embora quem por ele passava
Ainda mais usado se sentisse

Tanto um como outro ali estavam
De folhas no chão que nenhum pé escurecera
Oh, deixei o primeiro para outro dia
Mas sabendo como um caminho a outro leva
Duvido que lá possa voltar um dia

Isso direi com um suspiro na alma
No tempo que durar a minha vida
Havia nesse bosque dois caminhos e eu
Eu fui pelo menos utilizado
E aí reside toda a diferença

A MUDANÇA: A ANTÍPODA DA ELEGÂNCIA




A mudança desafia qualquer pretensão à elegância, ela é humilhante, ela nos desnuda para os velhos e para os novos vizinhos, a mudança é a própria vida na praça. Defendo a idéia de que morar em um determinado lugar deveria ser igual "casamento", para sempre, mesmo porque é uma questão de gratidão, por um lado e de predestinação por outro. Os mutantes são sempre ingratos com o passado, ainda mais se para uma região melhor, nem os nomes dos antigos vizinhos são mencionados depois da mudança. Tristes reminiscências do tempo de pobreza. Aliás, essa coisa de mudar para um apartamento de localização nobre, iluminado, com dois amplos salões, sala de jantar e de almoço também, com 4 quartos (todos com suite: privadas exclusivas), dependência completa para os empregados (as incompletas não têm o quarto), com playground, salão de festas, sala de jogos, piscina, campo de peteca, garagista, alarmes, circuito de televisão interna e externa, porteiro 24 horas é o sonho de alguns, para outros o pesadelo. Nada mexe mais com a vaidade de certas pessoas como poder morar bem. Essa coisa de querer melhorar de vida com casa nova é uma enfermidade da alma. Seria fantástico se na mudança as pessoas se deixassem na casa velha. Mas, pelo contrário, levam para a casa nova o espírito velho e imutável.


Mas falemos da mudança em si. Perfeito seria se o caminhão "adeus cortiço" pudesse parar na janela e sugar tudo de dentro do detestável cuchichó que foi a razão de tanto sofrimento familiar, parar na janela do sonhado éden e enfiar tudo prá dentro, sem testemunhas. Infelizmente, não há como manter um caminhão no ar defronte da janela do décimo andar, êle cai. Por isso rogamos a Deus que a engenharia moderna se sensibilizem e faça alguma coisa para nos proteger dos olhos alheios nossas tralhas que guardamos com tanta devoção. "Minhas coisas", "minha louça", "minhas panelas", "meu sofá", "meus retratos" (a morte documentada), "minhas reproduções de Dalí", "meus tabuleiros", "meu tudo", "minha história". Essa é outra irreverência do vernáculo mal manejado. Desconheço algo mais antipático do que a frase "isso tem história", ou então aquele lugar comum dos desquitados arrependidos, "tive história com o/a fulana". História sim, mas prá ser esquecida, enterrada e coberta com cal. Nesse ponto nada mais sensato do que entender que a história da gente pode ser a anti-história do outro, então é melhor parar com esse chavãozinho besta de "minha história". O melhor é adotar definitivamente e sem lástima a máxima "o que passou, passou". Quanto os objetos de estimação, isso é lixo e o lixo é o lugar certo para elas. Conheço gente que guarda bilhetinho de colega do pré-primário e trevo de 4 folhas (sequinho) dado pelo primeiro namorado que já deu óbito há 30 anos. Doença.

Qunto à mudança, as desavenças familiares começam quando o dia do transtôrno é marcado. O que vamos levar no carro, o que vai no caminhão, quais roupas levar, a comida da geladeira, as coisas semi-usadas de cozinha e limpeza? Jogar fora, nem pensar, a casa nova vai nos deixar na penúria, na ruína, na miséria por pelo menos uma década, rosna o pai. Ah, também não importa, muxoxea a mãe, a portaria é tão linda, tem até espelho prá gente brincar de tomar susto quando olha prá êle. Os vizinhos são chiquérrimos, cada carro de matar na garagem, afora os motoristas, todos uniformizados, lindos. E as empregadas domésticas, elegantérrimas, meias três quartos, frufru na cabeça, curso superior, uma riqueza! Isso que é vida, observa a "do lar", toda eufórica.

Véspera da mudança, toda a família de guiné pelo corpo afora, a inveja vai comer solta. A execrável pobreza, vizinhança cafona, não suportará o abandono da família que superou imobilidade social. Se alguém perguntar se os móveis vão para o apartamento novo, respondam que não, vão ser doados a uma creche de velhinhos, ordena a mãe furiosa com a impossibilidade de comprar qualquer ítem para a casa nova. Além disso, não quero que o novo endereço seja dado prá nínguem aqui do bairro. Vamos romper definitivamente com essa gentalha, a começar fechando a caderneta de compras na mercearia. E ainda chamam aquele muquifo de mercearia.

Mudança de gente fina começa à meia noite, vizinhança faladeira desmaiada de tanto trabalhar, vizinhança de classe adormecida sobre macios lençóis egípcios. Quanta fantasia! Começa o transtôrno. O melhor é levar algumas coisa antes porque os homens da mudança não têm cuidado com as peças de valor...de estimação. Resolve-se alugar a Kombi que serve a todos do bairro. Mãe, choraminga a adolescente, minhas roupas eu levo na Kombi, sim filhinha, coloque-as na mala meu bem, ah não, vai amassar tudo, melhor levá-las penduradas, onde diaba, ah no cabo do rodo, imagine, e a vizinhança? Nínguem vai ver, já são duas da manhã. Tudo bem, lá se vão roupinhas de pouca marca pendurados em cabides de lavanderia no cabo do rodo que já perdeu a borracha, um vexame, mas o rodo é lembrança do chá de panela da mamãe, êle vai. Depois de encher a Kombi até o talo, a bicha sai desenfreada com os pneus quase arreados para levar o máximo de coisas para o paraíso. Anda depressa, recomenda a mãe, levem a Sebastiana com voces, saiam e entrem pelo elevador de serviço, nada de chamar atenção. Elevador espelhad, lotadinho de caixas de papelão em estado precário, entra um vizinho, lindo, chegando de uma festa, de smoking e cabelos de gumex. A jovem passa pela primeira humilhação. O pão, rapaz de boa cêpa, cumprimenta e pergunta, estão mudando, querem uma mãozinha? A pobrezinha, sem voz, olha fixamente para a escova de cabelo cabeluda que desavisadamente ficou esquecida por cima de uma caixa de sapatos lotadinha de vidros com um dedo de xampu, dentifrício no final com a tampa engastalhada, sabonete todo ressecado formando sulcos profundos, batons derretidos, lápis de olho no tôco, vidro de acetona vazio, 6 cotonetes amarrados com gominha, um desastre. Quer ajuda, insiste o príncipe, não, nosso motorista já vem, responde a jovem ofendida.

Por aí vai, até que às seis da manhã a exaustão já tomou conta de todos, o caminhão parado com os homens da mudança aos berros, segura aí pôrra, que isso, é a cabeceira da cama, cadê o pé, são dois catálogos de telefone e quatro livros. A vizinhança classe A na janela horrorizada, pasmada, ameaçada, chocada, os recém-chegados, extenuados, entregam os pontos. Chega de pose. O dono da casa, histérico, desfila trôpego pela garagem agarrado num xaxim cheio de terra sêca, com a calça inteiramente enfiada no rêgo profundo o que lhe provocava movimentos rotativos estranhos com as pernas causados pela ânsia de se livrar daquela intrusão na racha. A mãe de sandálias havaianas (perdeu a unha do dedão numa topada no canto do tanque), meio mancando, implora silêncio e reverencia os vizinhos apatetados, com a subserviência e humildade que lhe faltaram na casa velha, a coitada carregava com toda a fineza que lhe restava uma bailarina falsa com dois olhinhos vesgos, tipo loja R$1,99, nos ombros uma bolsa Gucci (comprada em China Town, New York, Soletour, todos de sacolinhas iguais, viagem inesquecível) A empregada de short e barriga de fora abraçada nas roupas que estavam para passar e nos ombros o papagaio Betão com a cabeça pendendo prá frente, uns acharam que estava morto outros que era de mentira, mas a verdade foi que o cansaço se apossou da ave, agora prostrada e afônica, o filho pequeno chorando, nariz escorrendo e um travesseiro manchado sem fronha na mão, o filho do meio, doidão, com o cabelo a la rastafari, torrando o pai porque a êle coube levar a enceradeira e um poster do Guevara, a adolescente aos prantos, nunca mais saio de casa, jurava, perdi minha única esperança de casar com um aristocrata.

Quando o relógio marcou oito da manhã, o prédio chiquérrimo já tinha sido invadido pelos emergentes ensandecidos. O chofer da Kombi, Zé Trambique, quebra galho do bairro deixado prá trás, estava sem camisa, o umbigo, 10cm. de diâmetro, completamente à vista. Sem a menor parcimônia falou arrastando a palavra molhada de pinga: ô dona Geralda libera aí uma sacola prá eu colocar esses cacarecos da senhora, tô morto. A sem sacola no auge do desvarío, sentindo fisgadas lascinantes na batata da perna direita, o dedão contundido sangrando, deu um olhar macabro para o infeliz, achegou-se bem ao pé de seus ouvidos e disparou: vai caçar sacola na puta que te pariu. Com os olhos chispando fogo voltou-se para a vizinhaça boquiaberta e uivou: ôces vão junto cachorrada curiosa. Quanto à bailarina, seu último salto mortal foi na cabeça do porteiro de libré. Esse último, gay assumido, deu um suspiro e saiu do prumo. A mudança tinha acabado. No chão jazia um saco de pão e uma mantegueira com um restinho de manteiga. Ninguém da família teve coragem de buscar o café da manhã.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

CHEGA DE BEIJO !!!




Beijo, beijos, beeeeeeeeeeeeeeeeeijo, beijim, beijoca, beijão. Coisa mais antipática, repetitiva, sem sentido, fora de lugar e de hora. É uma mania nacional que já proliferou do Oiapoque ao Chuí. E dá-lhe beijo. É o beijo sem motivo, o beijo sem rumo, o beijo sem beijo, o beijo sem glamour, o beijo sem sentimento, enfim...o beijo besta. Há os beijos sagrados, beijo de mãe e beijo de filho, esses têm um sentido outro, respeitemo-los.

O beijo clássico, o beijo parnasiano, é o beijo de amor e por amor, fácil de ser identificado. Quem o experimentou sabe, não há lugar para dúvidas. Dizem que o beijo é o termômetro da relação amorosa. É beijo que tem significado, ele fala. É o beijo do apaixonado que se entrega de corpo e alma, fecha os olhos e naquele momento não há para mais ninguém.

Mas não sei por qual contrassenso social, o beijo vem perdendo seu augusto status . Beija-se por tudo e por nada. São os beijos fracos, anódinos, nada mais que uma contração labial que pode ser esdrúxula dependendo da proveniência. São os famosos beijos estudados, que em geral têm por acompanhante um par de olhos que caem lentamente, uma afronta à miopia. Quanta situação mal parada! A gente é apresentada a uma pessoa e lá vem ela toda íntima nos agredindo com dois sonoros e ridículos beijinhos. Uma chatura, uma antipa de arrepiar!

Há os educadinhos que só encostam o rosto e nem olham para sua cara ou, no outro extremo, os que fazem do cumprimento um ato obsceno. Metem-lhe dois tirambaços molhados nas bochechas e te deixam em estado de surdez temporária tamanho o ruído produzido pelos lábios em O. Esse é um beijo irritante que deveria ser proibido por lei. Muito comum, aliás. Outra modalidade infernal é aquela que o homem beija a cabeça da gente. Tenho ódio dessa irreverência: beijo no cabelo. Há também os desatentos que beijam tão pertinho da boca que, se a vítima der uma viradinha mínima, sai dali um beijo holywoodiano. E os que beijam a mão? Esses são os fora de moda, tipo tomar a benção.

O fato é que sair de casa hoje em dia implica no risco de ganhar um beijo de uma criatura que nunca viu antes, até atendente de loja quer despedida aos beijos, principalmente se a venda for satisfatória.

Além de um ato banal o beijo tornou-se a palavra mais falada no país. Todo mundo carrega um beijo na boca, pronto para ser catapultado a qualquer momento. Posso afirmar que hoje 100% das pessoas despedem com..."um beijo" ou simplesmente "beijo". Francamente, isso é uma antipatia sem limites. Outro dia, no pedágio, o rapaz me mandou um beijo; o cara do BHTRANS me liberou de uma "blitz" com um sonoro: "pode seguir, um beijo"; o frentista do posto de gasolina sempre se despede com um: "vai com Deus, um beijo". Sem falar nos atendentes das telefônicas, cartão de crédito e instituições do gênero que parecem treinados para faltar ao decoro e mandar um beijo ao final da conversa, nem sempre simpática. Em geral não resolvem o problema pendente e, depois de todo tipo de absurdos e explicações sem sentido, te brindam com "um beijo". Que coisa mais louca é essa?

O pior é conversar com uma criatura que independente do sexo, cor ou idade, fala na maior naturalidade: "estou doido para beijar".

Chega de beijo, gente. Devolvam ao beijo sua primazia e exclusividade no coroamento das relações amorosas. Deixem o beijo para o namorado que chega e lasca na amada um beijo como se tivesse voltando da guerra. É o beijo do meu amor que tem perfume de pomar e cor de pecado....Esse é o beijo verdadeiro, é o beijo sublime.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

CORNEIA LOGO!!!!










Só de ouvir falar a palavra corno as pessoas arrepiam de medo, é o mesmo que a morte anunciada. Essa é daquelas palavras que entre o significado e o significante não há espaço para pensar, é só dor no peito. Não existe esse que nunca levou um corno daqueles bem estruturados que a única saída nobre é a rigidez sepulcral. Bem, se não levou, só não levou ainda, espere...é uma questão exclusivamente de tempo, ou melhor, falta de tempo do outro. Sabem aquele cara imbecil de carteirinha, tímido escarlate de vergonha, meio estrábico, cabelo oleoso, ignorante juramentado, pobre de dar dó, andar arrastado e papo fraco, é o maior corneador da cidade. E a mocinha faceira, andar de libélula, sorriso adocicado, corpo traçado à régua e compasso, cabelos longos e dourados, pele aveludada, voz de abajour lilás, olhar colorido, herdeira rica e filha única, é a maior "corno" da cidade. Vá entender um despropósito desses, aliás nem queira, isso é um dogma, aceite e assunto encerrado.

Há uns incautos que se metem a teorizar a razão do corno. Tarefa sem sucesso. Corneia-se por qualquer razão, os homens pela simples necessidade de ejacular a êsmo, uma bobagem, e as mulheres...essas sim, corneiam "por amor". Amor de perdição, amor bandido, sofrimento atroz. Depois do "crime" passam a vida expiando a culpa horrível de ter traído o marido e os princípios cristãos. Diferente dos homens que traem e saem felizes com o grande feito, as mulheres se auto-flagelam, são capazes de cortar a própria carne para se livrarem do cancro da culpa. Mentira universal. Mulher trai porque trai e se reveste o 'pecado' com a retórica do amor é só para não trair também a estratégia mental dos ardis femininos.

A arte de cornear está entre as artes mais desprovidas de qualquer dom inato. Até a genética mais rasteira traz intacto o gene do corno. Esse sobrevive de Adão a nossos dias, um fenômeno verdadeiro. E assim caminha a humanidade, é corno para todo lado e a consequente dor de corno sem remédio, uma tragédia geral. Esse é o maior atraso da medicina. Aquele que descobrisse uma vacina para esse mal epidêmico (ser o corno, porque cornear é um deleite ímpar) colocaria Bill Gates no bolso. Sei de gente que tomaria logo uma dose dupla para não padecer dessa dor que torna a vida impossível por um tempo. Sim, é por um tempo mesmo. Ela passa e não deixa saudades, nem lembranças.

Tenho um amigo que resolveu cortar esse mal pela raiz. Diz ele que suporta a fome e o frio, mas um corno jamais, esse o levaria à morte, morte súbita. Para sobreviver nesse mundo de corneadores profissionais, ele dispara aos gritos para a moça no segundo encontro:"corneia logo filha da mãe, livra-me dessa expectativa maldita". A moça assustada some de vez sem o tempo hábil para cornear o incorneável. Hoje ele tem registrado em cartório dois mil e quinhentos namoros de dois dias de duração. Segundo sua teoria é melhor levar para a cripta gélida as desditas da vida, a cornos históricos e imerecidos. O único namoro que durou uma semana ele corneou a moça com a faxineira do prédio. Regra é regra e nada de fugir a elas. Corneia logo!!!!!!!!!!!!!E estamos conversados.

A máxima é: "quem nunca levou um corno que atire a primeira pedra".

domingo, 16 de maio de 2010

SAIR DO MUNDO V




Isso me enlouqueceu, como uma pessoa ia prá um lugar público e não jogava uma aguinha nos pés, enojada virei de lado, saquei que tinha gente na frente. Minha fileira passou incólume, nínguem. A pessoa que estava na frente não parava de mexer, comia como Ronildinha, a bela, que até hoje sou grata pelo café e ingrata pela tortura visual. Será que Patrício ainda continua o namoro? Sei lá, às vezes tomou tenência e doravante faz pesquisa de comportamento antes de azarar as moças. Pensando melhor é bem feito para ele, tipo lento. Há um tempo atrás se as moças atacassem os homens era um horror verdadeiro, mas eles encaravam e davam conta do recado, hoje tremem de medo perante a iniciativa feminina. Por isso não tenho dúvidas, os homens têm demonstrado que são todos meio frouxos, bem, é o que me contam. As mulheres estão levando a melhor, se esbaldam e ainda chamam o cara de bicha. É a vingança retroativa às gerações pregressas que sofreram nas mãos dos “vão ver quem canta nesse terreiro”, hoje piam.

Voltando à minha triste situação de estar entre um "chula" que desafiava todos os pós antisépticos e um inquieto daqueles que incomodam até o nada, fiquei com o primeiro, a posição era mais cômoda para mim. O bom foi que o homem da frente estava comendo Mentex e quando jogou a caixinha no chão, com mãos de pluma puxei a bichinha e mandei prá dentro as duas balas que o abençoado deixou prá mim. Sentí que já estava fazendo novos amigos. Voltei ao "chula" e declarei guerra definitiva aos dois. Liguei a lanterninha, tinha que ser módica porque se a pilha acabasse a coisa ia ficar literalmente preta. A mulher, não sei se nova ou velha, carregava uma anomalia que tenho a mais solene antipatia, o dedão agressivo. Carro-chefe dos outros quatro humildes dedinhos meio encurvados nas pontas. Coisa de tirar qualquer um do sério. Pensei, daqui esse pé não saí desse jeito. Sensibilizada pelos quatro dominados resolvi dar-lhes poder, esticando-os, igualando-os. Tarefa díficil mas não impossível. Cheguei a mão bem devagarzinho perto do segundo dedo da irmã de Cinderela e dei um puxão rápido. Sem dar tempo para que ela reagisse agarrei o terceiro, o quarto e o menor de todos que tinha uma unha pontuda mais afiada que dente de cachorro nenêm. Fiquei estarrecida com a reação da dona. Ela puxava o pé, retorcia o corpo, chutava, e eu alí, agarrada. Ao mesmo tempo que ela tentava por a mão na chapona, segurava nos braços da cadeira para não escorregar chão abaixo tais eram os meus furiosos arrancos. Nisso peguei na canela dela e dei um beliscão fininho provocando na atacada um grito desentoado, e todo tipo de movimento para desvencilhar o pé do caranguejo atacante. Parece que o desespero proveu-lhe de uma força hercúlea que puxou o pé da minha mão querendo levar vantagem, mas eu, encapetada apertava o bichão com tanta força que já estava mordendo a língua e desafiando “vão ver quem arrebenta essa corda primeiro”. Decidi ganhar a briga. Com as duas mãos segurei o roquefort, arranquei a sandália do pé da inocente ordinária e joguei pro alto, a cestona (sandália de corda) acertou a cabeça do rapaz inquieto que levantou meio tonto com a sapatada e desferiu um safanão na primeira têmpora à vista, era a da desgrenhada que deu um uivo e desmaiou. A coisa ficou complicada todo mundo falando inclusive eu que apareci no tumulto gritando escandalosamente, foi êle, esse bruto, foi êle que nocauteou Frutuosa Pau de Sebo, a irmã da delicada Cinderela. O cara saiu do cinema preso, a dos “pés que insultam” de maca e eu aproveitei para ficar com a bolsa da ingrata desequilibrada que não aceitou uma ajuda filantrópica: podólogo no cinema.

Quietinha depois de tanta balburdia, de bolsa nova, assití duas sessões do filme. Fui ao banheiro vasculhei minha bolsa nova, dinheiro só dez contos, um maço de cigarros, baton quebrado, uma conta de luz, dois grampos de cabelo e o melhor....uma caixa fechadinha do meu querido LEXOTAN. Foi a glória. Tomei logo dois prá relaxar e assim fui virando dia e noite no cinema buscando coisas no chão para comer, banhos esparsos, fumando à noite depois de tudo trancado e sem a menor vontade de voltar ao mundo da claridade.
Cinema também é diversão e eu me divertia só de não ouvir as vozes das pessoas que passam a vida querendo de mim a única coisa que nunca estive apta a dar, nãp posso contar o que é senão aumenta a fila. Lembrava das coisas de minha vida mas as fileiras das cadeiras me entretinham, elas nunca se movimentavam, nunca se dirigiam a mim como se eu fôsse uma a mais, pensava no meu serviço e era como se não tivessem passados quase 20 anos que trabalhava alí, e agora, não queria voltar nem para dizer adeus. Triste, sem nenhuma vontade de ir prá casa sabia que a felicidade de morar no cinema teria um fim. Quando as portas abriram para o início da primeira sessão saí meo trôpega e azaradamente dei de cara com uma amiga que me perguntou agressivamente: o quê você está fazendo aqui? Olhei firme nos seus olhos de espanto com o meus meio fechados pela intensa claridade, sorrí e apenas balbuciei, vim ver cinema. Cheguei em casa à noite depois de dar uns bordejos pela cidade, acendí a luz, o telefone urrava, atendí, nada importante. Troquei de roupa, apaguei a luz e enquanto escrevo essa história comemoro 9 anos de vida dentro dos cinemas da cidade, a cada semana um diferente. Consigo até escrever no escuro, uma dádiva!

SAIR DO MUNDO IV


Hora de levantar, olhei por baixo das cadeiras e não ví nenhum pézinho, imagine alguém aparecendo de súbito na sua frente em pleno início da evasão do ócio. Comecei a tarefa de “surgir” com prudência, cada movimento era pensado e acompanhado por alguns segundos de total imobilidade. Até que me assentasse na cadeira com a dignidade dos que ali estavam legalmente, tive que exercer a prática do contorcionismo, tudo doía. Começando pela cabeça, era fome, o pescoço, foi o travesseiro, os braços, sem dúvida dormí sobre ambos, a coluna, desencarrilhada, as pernas, dormentes, e os pés, acho que passaram a noite em posição de morto, cada tentativa de aprumo eram fincadas distribuidas pelos quatro pontos cardeais desse trapo, eu. Depois de “trabalhar”, como dizem os alternativos, o relax, notei que o filme era outro, tinha tempo para assistir mas antes ia ao banho de pia, um suplício.

Discretamente sentei ao lado de um casal jovem. A donzela tinha nas mãos um saco de pipocas, um copo de Coca e uma barrinha de chocolate. O rapaz era educadinho mas a mocinha tanto tagarelava como comia as pipocas às mãozadas, enchia a boca e bochechava e gargarechava com a pretinha, coisa de irar qualquer um. O fato é que o namorado ficou sexualmente atraído pela grulhenta impolida, começou a bolinar a bichinha e ela, resistente à princípio, cedeu à popica, desprezou as pipocas, largou de lado o saco já pelas metades, e se esqueceu da pretinha babujada. Foi a minha salvação, tomei um lauto café da manhã, o chocolate foi a sobremesa, simplesmente opíparo. Aí bateu-me a dúvida, mudar de lugar para não ser acusada de roubos de pipocas e Coca usada ou ver até onde ia aquela pouca vergonhagem. Decidi pela segunda opção, o filme ficaria para depois, tinha tempo. Fiquei quietinha, mas de olho.

O trem pegou fogo, a mocinha não era desse mundo, beijos daqueles de tirar o ar eram fichinha, êle, o rapaz, que no começo pareceu-me o danado, não controlava a situação que êle mesmo criou. No que o aparente entrão arriscou a mão meio trêmula na sobreloja da quentona, ela ordenou, pega firme cara e com a mão esquerda segurou o orgão assustado e até arrependido do coitado, grande provocador da fuxicação. Pelo movimento do cara tentando puxar o corpo prá trás saquei logo que a moça foi na bruta. Inebriada pelo desejo que lhe ardia sem tréguas a moça manteve a força, só isso explica o sussurro do infeliz, larrrga diaba, isso aí não é iôiô não. O pior é que quando êle a abraçou a carinha do inexperiente sacana ficou de frente para meu lado direito, foi dureza ver tudo sem virar o rosto. Entretanto, nessa hora que era de dor, dei fôrça, virei levemente o rosto, também desfigurado pela loucura da qual era testemunha ocular e em solidariedade fiz o sinal da Cruz. Envergonhado, Patrício, esse era seu nome, apertou os olhos e repetiu, larrrga. Acho que era um moço de família. Foi cumprir a obrigação de tirar um sarro no escuro e caiu na armadilha de uma mulher guiada pelo príncipio da volúpia. Eu de olho. A coisa ia esquentar porque aquela não era mulher de deixar barato. Êle, o culpado de tudo, que ao invés de deixá-la comer furiosamente as inofensivas pipocas e conversar em pleno filme, quis ser “gentil”, mostrar o quão romântico e macho era, tomou.

Não sei se por necessidade de apoio ou de alguém que no pós-sarro rezasse por sua alma, Patrício tomou-me como conselheira através de um código que criamos na hora. Enquanto Ronilda, (até disso eu já tinha conhecimento porque uma hora êle falou com ela, você é linda Ronildinha, eu pensei, que falta de gosto seu bicha) tentava abrir o fecho da calça de Patrício, êle incomodado olhava prá trás, pros lados, mas cutuquei-lhe o braço e fiz um sinal de “barra limpa”, vai firme cara porque hoje é hoje. Nisso ela abaixou e pôs a boca onde o capeta tava solto, acho que a meio pau, Patrício olhou prá mim e eu, a cúmplice fiz aquele olhar de “fazer o quê?” Patrício chegou ao climax e que vexame, de mãos dadas comigo. Tudo terminado, eu, extenuada pela imoralidade alheia, olhei para o gozador, sorrí e pensei, filho da puta. Mudei de lugar, precisava dormir. Voltei para o final das fileiras, fiz minha caminha e até a próxima. Acordei com um pézão na minha cara. Odor para exportação. (Continua no SAIR do MUNDO V)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

SAIR DO MUNDO III


A véinha, de inha não tinha nada. Ela era esquálida mas grande, tão grande que estava sentada com as pernas abertas porque as próprias não cabiam no espaço entre as fileiras. O cabelo também era grande e solto, coisa do outro mundo. Ainda assustada com a minha brusca chegada, a anciã fêz um bico torto com a boca e me atravessou com um olhar satânico que me valeu uma fincada enviezada no estômago e uma lágrima no canto do olho esquerdo que desceu cara abaixo para ir ficar no balança mais não cai no lóbulo da orelha. A bicha devia estar adentrada nos oitenta e só Deus sabia o que a esgurida estava fazendo alí. Tinha nas mãos um saco de um quilo de biscoito de polvilho que devorava com a sofreguidão dos recém apresentados à comida. Dentro da boca os biscoitos viravam chocalhos, eram barulhos incompatíveis com a apresentação física do biscuitim, eu, por mais que tentasse não conseguia prestar atenção na película. A ruminante falava sózinha, xingava os artistas, blasfemava contra Deus e os homens, amaldiçoava a nora que, segundo ela, era a perdição do filho e me dava cotoveladas que se não me safasse com a habilidade que o fiz, não estaria aqui prá contar a história. De repente, na maior falta de respeito a provecta acendeu um cigarro e mediante meu olhar indignado retrucou, fala alguma coisa que te meto a mão no meio do focinho, foi o bastante, afinei. A devedora de cemitério era das violentas. Comecei a amaldiçoar aquele lugar que fui à busca da paz. Resolvi mudar de cadeira quando notei que a desumana já fumada estava meio cochilando. Levantei devagarzinho esperando um bote caso a despertasse, mas a véinha já estava mascando o sono e as pernas, de tão compridas, escancararam. Cena que até Deus duvida..

Até então eu ainda não tinha entendido direito o filme sei que era uma estória de dois irmãos que não tinham sapatos ou perderam, sei lá, o fato é que foram duas horas de troca infinda de sapatos para que os pais não descobrissem que um tinha perdido o sapato do outro. Eu sei que aquilo me pôs neurada, imagine que a essa altura da vida cheia de cataclismas e outras tragédias inevitáveis pelos homens, um par de sapatos pode alterar tão drasticamente a vida de duas crianças. Essa era a minha história apresentada na forma cinematográfica. Coisas irrelevantes assumirem proporções gigantescas. Fiquei com ódio dos pais dos meninos que poderiam até matá-los se soubessem da enorme perda, do professor que maltratava o menino quando êle chegava atrasado por causa da amaldiçoada troca de sapatos, e sobretudo dos meninos que não revelavam o grande segredo e viviam o calvário do revezamento de um par de tênis que ora calçava o menino, ora a menina. O sofrimento era enorme para ambos porque o que sobrava em um folgava no outro. Os meninos eram eu. O inferno por nada.

Fui para a última fileira e ali refestelei na cadeira, afinal a maratona tinha sido dureza. O filme estava menos palpitante do que a platéia, eu, exaurida pelas emoções, sentia vontade de dormir, sabe lá o que é enfrentar em menos de duas horas uma jovem desvairada e uma velhinha transgressora? Caí no sono do mesmo jeito que as pessoas dormem nos aviões, todos durinhos com a boca aberta em forma de O, tal e qual os meninos cantores de Viena. Quando acordei já estava “escuro”, o filme parecia no meio, não sei e na platéia havia várias pessoas, outras. Percebi que a primeira sessão já tinha acabado. Tentei olhar as horas mas não conseguia enxergar até que me lembrei de uma lanterninha que Bebeth, minha amiga, me deu, sou grata a ela e vejam bem, na época achei o presentinho meio fraco, mas naquela hora valia ouro, eram nove e quarenta da noite. Fui à casinha, lavei o rosto e voltei para procurar um lugar para dormir antes de terminar a sessão. Se o lanterninha me visse ia me mandar sair e eu já estava decidida a pernoitar no recinto. Fui prá lateral da sala, na penúltima fileira e devargazinho deitei no chão. O travesseiro foi minha muda de roupa. Deixaria o banho para o dia seguinte. Alí começou meu exílio voluntário. Passaria uma semana dentro do cinema. Eu precisava disso, já não aguentava tanta pressão, perguntas que não tinham respostas, afinal estava vivendo uma vida que eu não queria para o pior inimigo, só para não fugir à tradição da maxima. Já deitadinha sentia que aquela seria uma noite de liberdade. Nem bem me acomodei sentí a transição do estado de leve torpor ao sono profundo. Não deu outra. Acordei no escuro sem saber onde estava, imediatamente me lembrei da minha nova morada, dormí mais um tempo indefinido até que fui acordada com a conversa de duas mulheres que deveriam ser as faxineiras do sala de cinema. Sacaneada com a invasão domiciliar tive algumas idéias para assustá-las mas preferí dormir mais um pouco, é lógico que se estavam começando a varrer as primeiras fileiras, minha casa seria deixada para o dia seguinte. Quando acordei novamente com vozes percebí que estava começando a sessão, faziam 24 horas que eu estava alí, relegada ao ostracismo ...felicíssima.  (continua no Sair do Mundo IV)

SAIR DO MUNDO II








Uma mulher que eu já havia visto na fila para comprar o ingresso, com seus vinte poucos anos, resolveu mudar de lugar e sentou-se exatamente do meu lado, bem agarradinha. A danada parecia egressa de algum hospício da cidade. Olhava para a tela com olhos desorbitados para que dali não lhe escapasse nada, eu, hirta de pavor, também olhava para a tela, mas não via nada, minha única preocupação era o momento do ataque da louca. Passei a sofrer de uma taquicardia sonorizada incontrolável. Bate baixo coração era a única ordem que eu conseguia proferir para o descontrolado, mas o próprio, ao invés de baixar o volume, passou a batucar dentro do meu peito. Simultaneamente fui atacada por uma coceira no braço, daquelas que a gente tem vontade de cravar as unhas e arrancar um pedaço, mas mexer como? O medo da dona era algo tão intenso, que o leve suor que sentí no começo passou a um hircismo jamais sentido em todo o continente africano. Pensei, agora ela me mata, com um cheiro desses, não há quem mereça viver. Preparada para o rito de passagem, sentí um dedinho gelado encostar no meu anti-braço e afundar no tecido que de adiposo se tornou poroso, sentia o toque no osso. Essa intimidade mexeu com meus bríos, fiquei possuída e virei-me rapidamente para o lado “tipo passar sustinho”. Deparei-me com um sorriso besta afivelado na boca e um olhar adefuntado. Trêmula, sorri para a desvairada e proferi um simpático oi, atitude pusilânime sem precedentes na história. Da total paralização facial anterior, as narinas da maníaca do cinema se abriam e fechavam à moda de um touro na arena, o ataque se anunciava inevitável. Qual nada. A aparição feminina enebriada pela odor do meu sovaco, azarolhou-se, deu um zumbido e com o riso congelado e as narinas contraídas para o centro, ficou paralisada. Aproveitei aquela paralisia temporária e saí dalí pulando por sobre as cadeiras até que estatelei ao lado da outra mulher. Era uma velhinha grandona e magra. (continua no Sair do Mundo III)

SAIR DO MUNDO I ( Série I II III IV)








Hoje ninguém me acha nessa cidade, vou tirar o bloco da rua. Com essa idéia fixa na cabeça peguei uma muda de roupa, um sabonete e bye bye. Com o pé na rua comecei a pensar, e agora? Para onde vou? Quero desaparecer do mundo, não suporto nada, nem a respiração humana. Quero desaparecer. Se isso só é possível com o suicídio, resolvi, como paliativo, passar umas horas no anonimato total, pequena saída. Entrei no cinema. Eram duas da tarde. Tudo escuro, que felicidade meu Deus. Àquela hora só tinham oito pessoas na platéia. Sentei em lugar discreto e sem saber qual era o filme ou os artistas. Comecei a observar os meus companheiros de deleite em hora oficial de trabalho. Dessas oito pessoas, não sei se aposentadas, endividadas ou sem o que fazer, seis eram homens e duas mulheres.

Os homens eram todos do tipo pouco apreciáveis à exceção de um que parecia estudante gazeteando aula. Cada um se assentou em uma fila ajeitando e deitando o corpo, ora suspirando, ora tossindo, ora bocejando, o relax era total. Nisso um dos homens deu um bocejo chorado e gemido. Eu sempre tive antipatias de quem emite sons eróticos no pós-bocejo, mas noto que essa característica é mais comum que imaginava. O pior é que o raio do “abrir boca” pega e aí, de um bocejo único, seguiram mais oito formando uma pequena orquestra de câmara sem maestro. Um deles não conseguia completar o prazer do bocejo e passou os primeiros dois minutos de propaganda que antecedem o filme, na luta entre a boca escancarada e os espasmos do bocejo frustrado. O som da puxada de ar desse cidadão alterou a respiração de todos nós, eram bufadas e estrebuchos de todo lado. Quando o incompetente conseguiu completar o bocejo a contento, soltou um uivo tão agudo que um dos “cinéfilos”, quase sufocado, vociferou, com voz esganiçada quer matar a gente ô tísico? O infeliz, agora outro homem, com as forças recuperadas pelo antológico e cinematográfico bocejo respondeu um sonoro vai à merda seguido de um sem-educação acompanhado de um é a mãe. Comecei a gostar, a tarde seria animada, a turma era das quentes. Dei uma olhada geral e saquei, aqui só tem gente “sem berço”. Detesto essa metáfora. Até parece que ter berço é sinal de estirpe e boas maneiras. Conheço gente nascida em berço de ouro e nem por isso.