sábado, 11 de julho de 2009

Autonomia da imaginação arbitrária

Tudo começou em uma noite chuvosa. Parado à frente de uma loja de conveniência de meu bairro, vi um homem bem vestido, bonito e extremamente sério. Ao dia seguinte lá estava a criatura, mesma posição, semblante inexpressivo, fumava. E assim por vários dias sucessivos o quadro era o mesmo. Tinha uma cara ingênua e inofensiva, se é lícita essa expressão porque na verdade aquele rosto desconhecia o sorriso ou alguma simpatia. Aos poucos o homem da rua foi se transformando e deteriorando. A barba cresceu irregularmente, as olheiras tornaram-se negras e os cabelos foram se desgrenhando à moda pré-histórica, como se um vendaval tivesse como tarefa transformar o que um dia foi belo em um espectro humano. As roupas imundas, rasgadas sem deixar o mais leve vestígio de asseio. Tomou a aparência de um mendigo, mendigo não pedinte, sem cachorro. O animal de estimação me parece ser a única ligação afetiva das enigmáticas pessoas que moram na rua. Sua aparição noturna me intrigava até que uma manhã o vi no centro da cidade caminhando, depois o vi mais umas tantas vezes vagando pelas ruas de diferentes bairros, não era dado ao sedentarismo. Será que ele me via também? Confesso sentir certo medo no olhar apagado daquele homem. Sirvam esses detalhes apenas de introdução de uma estória que durou quase 2 anos. Em face disso que força tem a imaginação. Passei a pensar nele com mais frequencia que o necessário eu queria extrair daquela alma uma explicação de sua vida.

Há algum tempo tenho observado
Ao lado da casa onde moro
Um homem em silêncio parado
Olhar sem brilho, embaçado
Imagino sensibilizada, qual será seu fardo

Quando ali apareceu era um jovem bem trajado
Mas em seis meses a estranha criatura
Por alguma severa desventura
Aparentava apenas um velho alquebrado

Passava as noites de pé, em alerta
Como um soldado em guerra permanente
Terá ele uma ferida aberta no peito
Ou na alma uma questão pendente

Já ouviram falar em alma suspensa?
É algo como um gélido torpor
A respiração é falha e tensa
O corpo se retorce em dor

Talvez seja esse o caso do homem do lado
Imobilizado como se estivesse a pensar
Em algo do passado remoto ou recente
Que se tornou inquilino indesejado em sua mente

Pode ser a mãe, um filho, um irmão
Pode ser o dinheiro, a desgraça, a ruína
Pode ser uma mulher que o confinou a essa prisão
Pode ser a vida, de esperança já não tem a mínima

Homem da rua, homem sem expressão
Quem sabe eu possa lhe dar uma mão
Se seu problema for de ordem material
Fico feliz, de todos é o menos mal

Se perdeu um amigo e dele não se esquece
Acalme-se que o tempo lhe trará a serenidade
Volte ao mundo, mas não muito tarde
Seu amigo foi ali, não muito longe, espere
Passará com ele toda a eternidade

Se é por um filho que tanto se abate
Se a vida que leva não é o que você quer
Boa atitude não é imobilizar-se
Mas parar ao seu lado para o que der e vier

Se contraiu uma doença letal
E com ela não suporta conviver
Pense que não é um privilégio seu
Nascer, viver e morrer

Se já não tem a mulher que mais amou
Se a perdeu para outro ou foi desamor
Se quer a verdade te direi aqui na rua
Comece a contar lua por lua

Depois de dez ou vinte luas cheias
Virão as outras para seu tempo brilhar
Agüente firme, a guerra é dura,não se renda
Ela arrasa, fere, destrói, mas vai passar

Quando estiver livre desse tempo anódino e inodoro
Volte a ser como os outros, aparentemente sãos
Mas saberá que apesar de tudo
Experimentou o inferno, a prometida danação

Por tantas já passei e com conhecimento confesso
Da vida levo dores e grandes tormentos
Mas se a loucura não me fez sua prisioneira
Continuo andando e adeus lamentos.

3 comentários:

  1. Campolina, gostei desse. Gosto da palavra "desamor" e acho bonito quando você a utiliza. Estou lendo Svevo agora, uma ótima dica, obrigada. Estarei sempre por aqui. Um beijo e boas férias,
    Taciana

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  2. Adorei o seu blog professora.

    Observadora da alma humana é ótimo.

    Rodrigo (o PM)

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