quarta-feira, 1 de julho de 2009

Dor nos Pés...essa mata.

O Pisante Assassino

Vivia eu exilada nos Estados Unidos, quando recebi pelo correio um pacote do Brasil. Tomei-o em minhas mãos e galopei para dentro de casa com o intuito de sorver a sós o deleite de o abrir. Antes porém pratiquei uma tortura contra mim mesma, velho hábito que trago da infância, adiar a felicidade. Fui à cozinha, fiz um café, tomei, acendi um cigarro, liguei o som, tomei banho, troquei de roupa, passei batom, pus brincos de pérolas e um anel também de pérolas. Estava preparando-me para o solene momento que abriria aquele pacote, ele sobre a mesa não me dava uma pista do que era. Hoje sei, era um criminoso de periculosidade não catalogado nos arquivos policiais.

Inocentemente tomei-o em minhas mãos e o abracei com a ternura que se abraça um filho. Aquele embrulho azul cerúleo era para mim um pedacinho do céu de minha pátria, um alento conterrâneo para minha alma triste e saudosa. Ao som do Hino Nacional comecei a filar, à moda dos jogadores de cartas, cada dobra do tesouro que era meu, só meu, meu pacote do Brasil.

De repente sob meus olhos piscantes brilharam duas esculturas, cor da terra brasileira, sim, o mais formoso par de sapatos que já vira em minha surreal existência. Minha patriota menina do olhos quis chorar de alegria mas eu a impedi, detesto lágrimas.

Depois de todas as honrarias prestadas à dupla, lavei novamente os pés, passei cremes caros nessa base cansada, sentei na melhor poltrona da casa e os calçei, ainda ao som do Hino Nacional. Que prazer, que sensação de bem-estar, o presente parecia feito da mais pura seda e ainda por cima exalava um perfume campestre. Eu os admirava a tal ponto que a dado momento, já desvairada de felicidade batizei-os com o nome do grande viajante desdobrado em dois: Marco e Pólo.

Pensei, vou sair, vou passear com Marco e Pólo. Pintei a cara para melhorar a estampa, puxei fortemente os cabelos para trás com o fim de esticar um pouco o rosto, passei perfume e com um pedaço de veludo lustrei delicadamente Marco, repeti o ritual em Pólo e saímos à exibição pública. Aquele dia era meu como se fosse o dia de meu aniversário, tudo estava a meu favor, a temperatura alta, uma leve brisa me dava guarida, as flores sorridentes se viravam para olhar a dupla, as árvores se faziam tendas para nos dar a sombra, alguns carros paravam e seus ocupantes me olhavam estupefatos, eu já não andava eu voava, eu era a mulher mais invejada da cidade, os homens e a natureza finalmente reconheceram meus encantos.

Marco e Pólo eram os responsáveis pela minha passagem, do anonimato total eu me tornava uma estrela. Sobre meus passarinhos que garantiam a leveza do meu andar, os ouvia pipilar a cada passo, eu desfilava pelos mais movimentados pontos da cidade.

Mas para pagar tributo ao velho chavão, a alegria de pobre dura pouco, aliás não dura nada. Um homem com cara de riso, com o olhar fixo em Marco e Pólo deu me um aceno com a mão, eu não o conhecia mas ensaiei um sorriso delicado ao admirador. Em seguida uma criança levada pela mão do pai apontou para os meninos que eu calçava. O pai, um insensível, puxou-lhe rapidamente e pediu ao inocente de gosto apurado a discrição de um adulto. Que bruto!

E lá ia eu com minhas maravilhas deslizantes pelo mundo quando um homem de aspecto fracassado me olhando urrou: sangue!...Continuei impoluta no meu desfile quando escutei outro grito de alerta, dessa vez como relincho: sangue!... Pensei que pudesse ter havido algum acidente por perto e as pessoas estariam prevenindo às outras pelos possíveis sustos. Até que um impertinente aproximou-se e disse me cara a cara: “moça seus pés estão ensanguentados”.

Pensava que o amor só era cego, hoje sei que o bandido é também indolor e insensível. Baixei subitamente os olhos e não vi nada, virei a cabeça lentamente para trás e flexionei a perna esquerda também para trás, repeti o movimento com a perna direita e a verdade esbofeteou-me o rosto. Meus tornozelos estavam no osso, era sangue que jorrava prá todo lado, não havia mais a pele, nem aquela carne magra que reveste esse ponto do corpo resistiram à fúria de Marco e Pólo, os atacantes.
Voltei para casa arrasada em lágrimas, traição igual só conhecia no gênero masculino, em sapatos, não. Eu os queria matar, lentamente, na tortura. Arranquei os amaldiçoados dos pés e os arremessei contra a parede sem dó, sem lástima.

Esbravejava e os ofendia como se fossem gente e não seres inanimados, afinal gente é que fere sem razão. No entanto estava perante uma exceção. Pensei...vou vender esse par de canalhas. Já que comigo não se adaptaram, quem sabe podem sentir-se melhor em outros pés. Ao par disso poderia obter algum lucro, o que não seria de todo um mal. Foi assim que começou a saga dos pisantes assassinos.

Depois de fazer curativos nos aleijões em que se transformaram meus pézinhos e tomar remédios contra ferimentos graves, coloquei os perigosos na caixa e rumei para a casa de uma amiga que hospedava umas parentes há quase um mês, quem sabe ali me veria livre de Marco e Pólo. Ah, há um detalhe que me esqueci de mencionar, o modelito da dupla. O bico dos ignóbeis era furado à moda dos anos 60, tinham também uma alça no peito do pé que lhes dava uma graça infinda. O salto era grosso, firme e elegante.

Chegando à casa da anfitriã de visitas odiadas no exterior, uma das hóspedes enlouqueceu com a beleza dos irresponsáveis, antes que eu fizesse qualquer objeção ou recomendação ela os enfiou pé afora enquanto seu desavisado dedão escorregava para dentro da máscara mortuária e se encaixava na abertura da frente. De repente começaram os gritos desesperados da hóspede-menina: socorro, tira, tira pelo amor de Deus. Sentada no chão ela blasfemava tentando tirar Pólo de um pé que apertou seu dedão de tal forma que ele imediatamente inchou e arroxeou. Enquanto a ajudávamos Marco se incumbia de fazer sua parte. Na minha cabeça a gangrena era certa. Lutamos bravamente contra os dois, eu puxava o corpo da possuída e minha amiga os assassinos. Quando a liberamos, o impacto foi tão grande que fui parar com as costas em uma parede e minha ex-amiga na da frente, uma violência. Marco e Pólo mais uma vez festejaram a vitória.

Sai dali desagradada, sem convites para ficar mais um pouquinho, mas já pensando em outra vítima. Lembrei-me de uma colega chinesa que aparentemente gostava muito de mim. Seus pés eram fininhos e delicados, naturalmente os sapatos não teriam como fazer-lhe mal. Essa filha de Mao Tse Tung por certo os compraria, eu já obsevara que longe dos olhos do Partido, ela se deleitava nos prazeres do consumismo capitalista desenfreado. Quando lhe mostrei o inocente par de sapatos, seus olhos puxados desempuxaram-se, aquele era um objeto precioso, duplamente importado, do Brasil para os Estados Unidos e no futuro para Pequim. Comprou-os sem pestanejar. Cinqüenta dólares. Os agradecimentos foram de tal ordem, que sentia-me previamente culpada só de imaginar o espírito perverso de Marco e Pólo voltando à carga e dessa vez a guerra seria ideológica. Não deu outra.

Quando sai da biblioteca vi Turikita rodeada de patrícios que falavam e gesticulavam como se tramassem uma retaliação ao sabor amarelo. Foi só pôr os olhos em mim que a "vermelha" pouco convicta miou, Luchiiiiiiiiiiiiiiiinha (meu nome é Lúcia mas Turikita não pronuncia bem o C e eterniza a sílaba tônica,) que “iiiiiiiisho”? Eu quis fugir mas amedrontada por uma possível perseguição amarela, a atendi. Meu Deus do céu que estrago, lamentei. Ela, implacável, com os pés franzidinhos horizontalmente, vociferava, “where is my money?”.

Dessa vez achei que Marco e Pólo fizeram bem, afinal, aquele não podia ser o comportamento de uma chinesa maoísta que se prezasse. Indiferente à dor lascinante que sentia, ela só queria saber do dinheiro. Eu também, mas comunista não sou, logo posso ter uma certa ternura pelo escasso vil metal. Devolvi a ela “meu dinheiro” e me mandei sob ameaças da furiosa turba oriental; os delinquentes dentro da caixa.

Depois de tanto sofrimento e já resolvida a pôr fogo no detestável presente, encontro-me com uma brasileira conhecida por sua personalidade invejosa, ela queria tudo dos outros, inclusive os maridos. O meu infelizmente ela não quis, nem tudo eram flores naquelas plagas. Quando viu a caixa perguntou de cara, que isso? Um par de sapatos do Brasil, estão grandes para mim, quer comprá-los? Falei com doçura. Supitando ela abriu a caixa e com um sonoro suspiro de admiração pagou-me os cem dólares (aumentei o preço) e saiu saltitante, em lua de mel com sua nova aquisição.

Ao dia seguinte quando passei de ônibus por uma rua calma de minha vizinhança vi uma moça agarrada em um poste. As pernas estavam trançadas e trêmulas, estranha visão. Quando subi meu olhar a seu rosto, reconheci a tal brasileira invejosa. Pagou caro pela inveja. Seu rosto estava inteiramente desfigurado, os olhos azarolhados, a boca tomou o formato de um O, coisa do outro mundo e a cabeça girava com uma rapidez impressionante, parecia um pai de santo em sua melhor perfomance. Quando baixei meu olhar para o chão vi que ela estava com um pé em ponta e o outro dobrado para fora.
Apavorada desci do ônibus e reconheci Marco e Pólo atacando outra vez.... Ela só me lançou seu olhar vesgo e gemeu:"bandida".

Essa é a estória de um par de sapatos, assassinos da base. Hoje depois de julgados e condenados, esses malditos pisantes jazem enforcados no galho de uma frondosa árvore no interior dos Estados Unidos. Torná-los inacessíveis foi a única forma de impedir que o espírito de “serial killer” continuasse inutilizando os pés femininos.

Não sei o porquê da fascinação das mulheres por sapatos, acho mesmo que seja algo do gênero feminino, padecemos dessa obsessão e assunto encerrado.

Pois bem, contei esse drama para que todos saibam o que pode acontecer por amor: eu sentia um amor verdadeiro por sapatos. Era aquele tipo de amor raro, imotivado, sincero, fiel e subserviente. Tenho certeza que foram os sapatos os grandes amores de minha vida. Sempre que os via nas vitrines, reverenciava-os como a um ser superior. Sapatos para mim tinham alma e coração...macabra crença. Essa dor eu guardo no peito.

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