domingo, 3 de outubro de 2010

OS OLHOS DO BURRINHO



Uma certa manhã de domingo, minha filha e eu acordamos com um choro muito forte que mais parecia de um animal que de um ser humano, e era. A tragédia ocorreu à porta de nossa casa. Um carro em alta velocidade atropelou um burrinho, que não sei por qual desventura estava bordejando em plena avenida. O animal não morreu, mas teve as quatro patas quebradas e jazia no asfalto, deixando para os homens, em forma de gemido, toda a dor que sentia no seu último suspiro neste mundo. Corremos prá rua em desabalada carreira para dar o último alento ao jovem muar. Valeu a pena.

Minha filha limpava o sangue que escorria de sua boca como as águas inocentes correm sobre o leito do riacho. Dali ela tentava amenizar o estrago nas pernas, fazendo massagens e gritando por socorro. "Alguem chame alguem pelo amor de Deus". Enquanto isso o burrinho agônico sofria espasmos de dor, chorando em voz alta, pedindo clemência, que fosse um tiro de misericórdia no coração.


Foi nesse momento que me aproximei. Confesso meu acovardamento mediante situações da dor do outro, minhas pernas me faltam, meu coração dispara e só tomo atitudes se não houver alguem para fazê-lo. Não era o caso, a rua estava cheia de curiosos inoperantes como eu, que ora excomungavam o motorista irresponsável, ora pediam por um revólver para sacrificar o pobre animal. Não sei bem o que se passou comigo, mas fui fortemente atraida para perto da cabeça do burrinho. Quando me achegava percebi que algo insólito estava acontecendo comigo. Senti os olhos do animal me fitando com uma intensidade que jamais senti nos humanos. A força era tão grande que me ajoelhei perto da cabeça do animal e fiquei, como que hipnotizada, totalmente fixada naqueles olhos negros quase sem vida.

De mansinho o burrinho virou o pescoço para frente e colocou a cabeça sobre meus joelhos. Trêmula comecei a cantar uma velha cantiga de ninar acrescentando ao canto um leve passar de mãos em seu ensaio de crina. A cena demorou não mais que 15 minutos, ele morreu. Agora quem sofria, com a intensidade que a perda provoca, era eu. A comoção foi geral, alguns mais sanguinários pediam o linchamento do motorista/assassino, outros, os moderados, só queriam lhe dar uma inesquecível surra, os sensíveis, se organizavam para preparar as exéquias do finado com toda a pompa que o acontecido demandava. Eu, cerrei-lhe os olhos.

No tempo que se seguiu a este triste episódio observei que em situações de tensão os olhos do burrinho apareciam para mim, palavra que os via com nitidez, não era sonho, não era fantasia, e menos ainda loucura. Só no olhar eu me acalmava, aquele par de olhos passou a ser um bálsamo e também um talismã. Invocava os olhos do burrinho e lá estavam eles, sempre a postos. Tomada pelo alívio eu cantava a cantiga para que ele se sentisse protegido, muitas vezes os olhos dançavam a minha frente, sempre juntos. Esse foi um segredo que jamais revelei, afinal ninguem acreditaria no caso, em que pese sua normalidade.

Um dia, muitos anos depois, fui passear em um dos parques de minha cidade, quando deparei-me com uma porção de burrinhos puxando pequenas charretes para passear com as crianças. Cheguei perto do rapaz que alugava os animais, contei-lhe do atropelamento e da tristeza gerada pela morte de tão inofensivo animal. Comovido o jovem falou: "ah aquilo foi um vacilo meu, soltei-lhe a rédea e ele escapou pela avenida, aquele burrinho era nosso mascote, sempre vinha a frente de nossa tropa, ele nasceu sem os olhos, era cego.

Sai caminhando sem rumo pela parque quando percebi algo me seguindo. Eram os olhos do "meu burrinho", o do moço não tinha olhos, nem alma.

5 comentários:

  1. Muito lindo, fiquei deveras emocionada pensando no pobre burrinho.
    Toda vez que eu encontro os burrinhos saindo do parque ao final do dia eu penso naquelas pessoas que sequer procuram algo para fazer e na volta um tanto quanto solene dos burrinhos que trabalham todos os dias até o final do expediente.

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  2. Os burrinhos me comovem também. Lembra que eles passavam diariamente na rua Bernardo Mascarenhas em frente ao nosso prédio? Boa lembrança.

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  3. Não resisti! Minha decisão de não me manifestar foi por água abaixo! E isso é razoável! Há razão para tal: seus textos instigam...
    Sensibilidade deliciosamente pungente!
    Cristina, o olhar é nutrido pelo sentimento, que cria e toma caminhos próprios capazes de lhe conferir sentidos, os mais variados!
    Genial!

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  4. Ah, quanta saudade dos burrinhos, do Parque Municipal, da infância, de BH, de você...

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  5. Estava eu aqui procurando uma imagem de burrinho. Eis que me deparo com tão comovente texto.. lindo.... Beijos pra vc, com todo carinho e desejo de um feliz natal e ano de 2012 carregadinho de boas surpresas e realizações.

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