sábado, 13 de novembro de 2010

DÁ-SE




Lá ia eu toda cheia de alegria no coração, andando pelas ruas da cidade, quando deparei-me com uma placa defronte a uma casa escrita: dá-se. Aquilo pareceu-me inusitado, jamais havia visto algo assim. Aluga-se, vende-se, isso está prá toda parte, mas dá-se? Tinha que ver isso de perto afinal, não era uma casinha qualquer, era uma casa linda, grande, no alto de uma pequena colina gramada com pequenos jardins coloridos salpicando o verde escuro da grama, manchado de inúmeros outros tons de verde. Parei o carro, desci calmamente e fiquei por uns minutos admirando aquele primor. Pensei, será que estão dando essa casa? Claro que não, estou vendo coisas.

Eis que senão quando uma senhora abriu a porta, desceu pela pequena colina e muito delicadamente perguntou-me se eu queria visitar a casa. Atônita pensei, morri e não me dei conta, isso não podia ser do mundo dos homens, mas era. Entrei meio amedrontada, mas já tendo pouco a perder, encarei o insólito. Não que eu goste de surpresinhas, nem curiosa sou, mas segui a senhora que andava tão levemente que tive a nítida impressão de ser uma alma do outro mundo.

Quando entrei na casa fiquei maravilhada, era tão linda, tão linda que igual eu nunca vi. Perguntei a ela se a placa estava errada, indignada ela apenas me olhou com um ar de espanto. Essa casa está para ser dada a quem quiser, você a quer? Já sofrendo de nanismo na voz balbuciei, a senhora vai me dar essa casa? Sim, respondeu a boa alma e sorriu. Conformada por estar travando uma amizade com seres do Além, entrei no jogo. Quero. Definitivamente eu queria aquela casa. Calmamente a senhora entregou-me as chaves e levou-me para conhecer o resto da casa. Aquilo era a materialização da imagem onírica do belo. Indescritível. Nesse momento, com as chaves apertadinhas dentro de minhas mãos proprietárias, ofereci como cortesia aos psicanalistas esse meu ato de insanidade. Aceitei a casa.

Depois das devidas apresentações dos espaços da casa, a Alma dirigiu-se ao portão de entrada enquanto e me informava como deveria cuidar da casa e dos jardins. Fiquei um pouco aflita imaginando como eu poderia manter aquilo tudo, mas atrevida que sou pensei, dou um jeito. Quando ela atravessou a rua à guisa de partir e deixar-me com uma casa no alto da colina, com jardim verde e colorido, apavorei. Senhora, gritei, isso não é uma brincadeira,é? A senhora acha que vou aceitar uma casa dessas de uma pessoa que não sei quem é, assim como a senhora não sabe quem sou? Com um olhar de comiseração pela minha insegurança frente ao "fora do comum", ela falou: "a casa é sua minha filha (não gostei, mãe eu já tenho), a única condição que imponho e que já ia me esquecendo é que você terá que desfrutar da casa sem contar para absolutamente ninguém. A cada tres dias virá uma pessoa para que você lhe dê a lista do supermercado e o que mais precisar. O silêncio é a única condição para a casa ser sua, em um ano eu voltarei para saber como anda". Virou-se e foi embora.

Um ano depois...

Minha vida transformou-se, foram os melhores 365 dias de toda a minha vida. Na minha casa eu era plenamente feliz, vivi plenamente sem a interferência de qualquer pessoa, todos os dias foram rigorosamente comandados por mim. Uma semana depois do primeiro ano, aquela senhora apareceu numa tardinha. Cumprimentou-me pelo esmêro que a casa foi mantida e sobretudo pelo meu silêncio, até então nem aos amigos mais chegados eu mencionara aquele sonho que estava vivendo, na mais linda casa no alto da colina. E assim continuei por mais alguns meses, quando amaldiçoadamente contei a uma pessoa de extrema confiança o que estava acontecendo comigo. Essa pessoa não conseguiu guardar o segredo e comentou com outra e essa com outra e mais outra, até que a metade da cidade sabia da estória.

Começou o meu calvário. As perguntas e insinuações a respeito da "casa dada" foram as mais criativas possíveis. Até no narco-tráfico fui acusa de estar envolvida. Talvez um amante bem velho, uma maracutaia a ser descoberta, desvio de dinheiro público, qualquer coisa menos "uma casa dada". isso sem contar os risinhos perversos nas horas perdidas em especulação sobre o real dono da casa. Bem, perdi a casa, depois de romper voluntaria e estupidamente o pacto com a senhora. Uma alma? Não sei.

Quem porventura ler essa estória saiba que não é uma ficção. Aconteceu comigo. A casa está no mesmo lugar com a placa "dá-se". Fiquei sabendo de duas coisas, a primeira é que essa casa vem sendo dada e tomada de ano em ano. A segunda é que assim como o átomo, a felicidade é indivisível. Tem uma terceira que aprendi, todas as vezes que julgamos alguém, inevitavelmente erramos. Eu também errei, julguei a senhora e me esqueci da marca humana. Imperdoável.

Acredite se quiser!

Um comentário:

  1. A felicidade é indivisível!
    Verdade cruel pois a felicidade é inseparável da vontade de, ao cantar aos quatros cantos a raridade deste momento, compartilhá-lo.
    Sem dúvida, marcas humanas.
    Lindo conto, Cristina!

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