segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Visão do Paraíso Vingança II



Essa é a história da bela Dona Pilar de Sevilha. Casou-se com o encomendero Dom Francisco de Bilro e em seguida, em seus ingênuos 19 anos, foi para a América acompanhando o marido. Nascido em Alcalá de Henares, ele era filho de uma daquelas antigas famílias espanholas leais ao Rei, devoção incomun naquelas plagas convulsionadas pelos conflitos internos. Dom Francisco já estava adentrado nos anos quando, estimulado pela possibilidade de aumentar sua fortuna, aventurou-se pelo Novo Mundo. Dona Pilar foi uma das primeiras mulheres européias a pisar na nas terras quentes, desembarcou em janeiro de 1512, em Santo Domingos, no Caribe.

Chegando ao Novo Mundo, D. Francisco, em defesa da frágil esposa, confinou-a em casa sob severa vigilância de alguns indíos já pacificados encomendados ao espanhol. De caráter violento Dom Francisco mantinha a disciplina em sua encomienda (terras), aplicando terríveis castigos aos nativos pela mais pálida transgressão. Homem inclemente.

Dona Pilar era autorizada a dar um passeio diário pela redondeza, sempre acompanhada de um pequeno regimento de soldados espanhóis, que a qualquer ameaça à integridade da senhora, estavam autorizados a disparar suas armas. No entanto, o par de olhos azuis de Dona Pilar não podia ser submetido ao controle. Eram olhos de ver. Sem manifestar qualquer alteração em seu comportamento, a jovem sempre pedia para ir até à cachoeira que ficava a menos de 15 minutos de casa. Ali ela se sentava e olhava candidamente para o além, saudades da Espanha? Não. Dona Pilar estava enfeitiçada. Um índio sempre surgia em algum ponto da selva e desaparecia antes que os soldados o percebessem. O jovem exibia uma silhueta perfeita, cabelos longos, andar felino e sedutor. Aquilo sim era a visão do paraíso, da salvação terrena, do descontrole dos sentidos, da fraqueza do corpo, do sortilégio sem antídotos para aplacá-lo. Dona Pilar caiu de paixão, daquela que só se tem uma na vida, sentimento independente e devastador.

Um dia, Dom Francisco teve que sair da encomienda para um encontro com os visitadores espanhóis recém chegados à colônia. Dona Pilar, a ingênua, dispensou os soldados, não queria passear, estava cheia de tristeza pela ausência do marido. Passou o dia dentro do quarto, seus soluços incomodavam os serviçais até que o silêncio invadiu a casa. Dona Pilar teria adormecido, todos se tranquilizaram.

Quando o sol começou a desmaiar e dar lugar a uma lua só vista no Novo Mundo, Dona Pilar foi à janela, olhou em volta, respirou fundo e em desabalada carreira chegou em cinco minutos defronte à cachoeira. Trazia o corpo nu sob uma capa protetora de sua concupiscência. O silêncio da selva era quebrado por sua respiração descompassada e pelo canto dos pássaros, uma sinfonia. De súbito Dona Pilar foi tocada nos ombros por uma pena, aquela leveza era o peso das mãos do índio. O sangue correu pelo corpo da moça, abrasante como a lava de um vulcão. Ela virou-se e deparou com um deus. Um deus selvagem, de olhos amendoados e intensos, pele morena cor de canela, uma especiaria do Oriente, nariz perfeito, boca desenhada por um serafim, guardiã dos mais belos dentes já vistos pela extasiada Pilar. Isso seria uma prova divina? Não, interpretou a moça, um presente de Deus, uma compensação pelo castigo daquele casamento sem amor.

O índio tinha um perfume natural que ela jamais sentira em Dom Francisco. Ele falou umas palavras que ela não entendeu, mas respondeu com um riso afivelado na boca.De seus lábios exalava um hálito deconhecido, inebriante, algo parecido com cacau. Pilar pensava, essa é a verdadeira visão do paraíso, agora entendo porque esses espanhóis não deixam as mulheres espanholas livres nessa terra. Não há como competir, essa guerra é perdida. No entanto, aliviada pelos efeitos da dominação espanhola, Pilar antevia um milhão de índios a seus pés e dentre eles o escolhido. Foi quando os corpos começaram a se entender, como diz o poeta, porque as almas não se entendem não.

A esse encontro sucederam vários outros. Pilar driblava a vigilância, o marido e qualquer obstáculo que a impedisse de cair totalmente entregue nos braços do guerreiro. Passaram algumas semanas e a história tomou rumos inusitados. Pilar se banhava na cachoeira enquanto o índio bebia a água que escorria morna por seu corpo, Pilar deitava na relva e ele depois de olhar com perplexidade aquele corpo branco imaculado, atravessava suas entranhas à moda dos fantasmas. Não havia por ali nada similar aquele idílio amoroso, os dois formavam simbióse mestiça. Pilar lhe ensinou algumas práticas sexuais européias e ele as aprendou e adaptou magistralmente a sua forma, mais natural, ecológica, diríamos hoje. Era uma paixão sem precedentes naquela região. As palavras não faziam parte daquele ambiente e não faziam falta alguma. Com todos os sentidos aflorados o casal transgredia em forma de prazer carnal levemente blindado pelo pecado. Quando a lua surgia ele dançava e provocava no corpo da espanhola dores sem remédio. Pilar e o índio, essa era a grande ironia da conquista.

Uma tarde, depois dos deleites costumeiros, o índio segurou a mão de Pilar e os dois saíram caminhando sem destino. Para Pilar aquilo era um caminho sem volta. Nunca mais veria Dom Francisco, viveria na selva, a natureza seria sua casa e o índio a materialização da imortalidade da alma. Assim foram andando lentamente, o sol se desmaiva coberto de nuvens ensaiando um arremedo da aurora boreal, ele a abraçava, enrolava seus cabelos nos dela, seus olhos marejavam enquanto Pilar era toda felicidade.

Ao chegar no alto de uma montanha, um vento frio fez Pilar estremecer. Ele a apertou firmemente contra seu corpo, informando-a que ele a esquentaria eternamente. Segura, Pilar fechou os olhos e em estado de graça, viveu as delícias do paraíso uma vez mais. Ela não teve tempo de se dar conta que o inimigo é sempre o inimigo, em que pese a paixão. Quando seu corpo caiu pelo despenhadeiro, Pilar era apenas a espanhola realizada no Novo Mundo.

Poucos dias depois nas buscas de Pilar desaparecida misteriosamente, encontraram seu corpo sobre uma pedra e um índio morto sobre ela. Diz a lenda que a cachoeira onde os amantes se banhavam é hoje um santuário dos enamorados, suas águas são sagradas e choram como as cordas de um violino quando o sol se despede.

Há várias formas de vingança ainda que se fira a própria carne. É só uma questão de escolha.

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