sábado, 2 de janeiro de 2010

O CORPO POÉTICO



Se assim o foi é porque assim tinha que ser, se assim o foi. Moça mais recatada, séria e tímida não havia na cidade, tornava-se escarlate frente a um simples cumprimento masculino. Os anos passavam e ela não via nada, também não sofria de solidão, seu pensamento era casto de vida. Sua única distração era ler poesias. A vida lhe oferecia isso e ponto final.

Uma tarde, passando por uma praça, ela viu um grupo fazendo uns movimentos físicos sob o comando de um rapaz. O corpo de cada um lhe pareceu uma partitura musical, única. Extasiada ela assistiu às performances com um interesse que até então desconhecia. O maestro observando aquela moça fez um sinal para que ela se integrasse ao grupo. Irritada, ela lhe lançou um olhar de tão soberano desprezo que faria estremecer a mais segura das criaturas e se afastou. Noite insone, noite de vigília, esperava o dia seguinte. Voltou à praça, lá estava o grupo. Por uma razão inexplicável ela individualizou o maestro. Sentiu que ele regia com o próprio corpo às diversas partituras. Não via os outros, só o maestro, o professor. Ela entendeu que o corpo podia ser uma poesia. Ele era uma poesia.

Viciada, ela passou a ser a mais assídua frequentadora da praça e do maestro. Cada movimento do corpo do rapaz alterava o funcionamento do corpo dela, estaria sofrendo de alguma moléstia incurável?

Dois meses depois, voltando prá casa depois de sorver sua dose de ópio diária, ela entrou em um centro espírita e perguntou a um pai de santo, é possível que alguém possa ser incorporada por uma entidade poliglota sem o menor controle sobre suas atitudes? Ele assentiu, é possível.

Naquele mesma manhã, a moça tímida, recatada e séria esperou o fim do concerto, aproximou-se do maestro com um suave trejeito de dançarina e perguntou-lhe, o senhor entende inglês? Ele respondeu intrigado, não. Ela sussurou, I love you. O senhor fala francês? Não, ele repondeu e ela translúcida balbuciou, Je t'aime e espanhol, fala? Não, disse ele, então, replicou ela, Yo te amo. Mas o senhor certamente sabe ler partituras? Ele disse, é evidente. Ela o olhou profundo, levantou os braços melifluamente e dançou pela praça como se fosse uma poesia.

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