domingo, 16 de maio de 2010

SAIR DO MUNDO V




Isso me enlouqueceu, como uma pessoa ia prá um lugar público e não jogava uma aguinha nos pés, enojada virei de lado, saquei que tinha gente na frente. Minha fileira passou incólume, nínguem. A pessoa que estava na frente não parava de mexer, comia como Ronildinha, a bela, que até hoje sou grata pelo café e ingrata pela tortura visual. Será que Patrício ainda continua o namoro? Sei lá, às vezes tomou tenência e doravante faz pesquisa de comportamento antes de azarar as moças. Pensando melhor é bem feito para ele, tipo lento. Há um tempo atrás se as moças atacassem os homens era um horror verdadeiro, mas eles encaravam e davam conta do recado, hoje tremem de medo perante a iniciativa feminina. Por isso não tenho dúvidas, os homens têm demonstrado que são todos meio frouxos, bem, é o que me contam. As mulheres estão levando a melhor, se esbaldam e ainda chamam o cara de bicha. É a vingança retroativa às gerações pregressas que sofreram nas mãos dos “vão ver quem canta nesse terreiro”, hoje piam.

Voltando à minha triste situação de estar entre um "chula" que desafiava todos os pós antisépticos e um inquieto daqueles que incomodam até o nada, fiquei com o primeiro, a posição era mais cômoda para mim. O bom foi que o homem da frente estava comendo Mentex e quando jogou a caixinha no chão, com mãos de pluma puxei a bichinha e mandei prá dentro as duas balas que o abençoado deixou prá mim. Sentí que já estava fazendo novos amigos. Voltei ao "chula" e declarei guerra definitiva aos dois. Liguei a lanterninha, tinha que ser módica porque se a pilha acabasse a coisa ia ficar literalmente preta. A mulher, não sei se nova ou velha, carregava uma anomalia que tenho a mais solene antipatia, o dedão agressivo. Carro-chefe dos outros quatro humildes dedinhos meio encurvados nas pontas. Coisa de tirar qualquer um do sério. Pensei, daqui esse pé não saí desse jeito. Sensibilizada pelos quatro dominados resolvi dar-lhes poder, esticando-os, igualando-os. Tarefa díficil mas não impossível. Cheguei a mão bem devagarzinho perto do segundo dedo da irmã de Cinderela e dei um puxão rápido. Sem dar tempo para que ela reagisse agarrei o terceiro, o quarto e o menor de todos que tinha uma unha pontuda mais afiada que dente de cachorro nenêm. Fiquei estarrecida com a reação da dona. Ela puxava o pé, retorcia o corpo, chutava, e eu alí, agarrada. Ao mesmo tempo que ela tentava por a mão na chapona, segurava nos braços da cadeira para não escorregar chão abaixo tais eram os meus furiosos arrancos. Nisso peguei na canela dela e dei um beliscão fininho provocando na atacada um grito desentoado, e todo tipo de movimento para desvencilhar o pé do caranguejo atacante. Parece que o desespero proveu-lhe de uma força hercúlea que puxou o pé da minha mão querendo levar vantagem, mas eu, encapetada apertava o bichão com tanta força que já estava mordendo a língua e desafiando “vão ver quem arrebenta essa corda primeiro”. Decidi ganhar a briga. Com as duas mãos segurei o roquefort, arranquei a sandália do pé da inocente ordinária e joguei pro alto, a cestona (sandália de corda) acertou a cabeça do rapaz inquieto que levantou meio tonto com a sapatada e desferiu um safanão na primeira têmpora à vista, era a da desgrenhada que deu um uivo e desmaiou. A coisa ficou complicada todo mundo falando inclusive eu que apareci no tumulto gritando escandalosamente, foi êle, esse bruto, foi êle que nocauteou Frutuosa Pau de Sebo, a irmã da delicada Cinderela. O cara saiu do cinema preso, a dos “pés que insultam” de maca e eu aproveitei para ficar com a bolsa da ingrata desequilibrada que não aceitou uma ajuda filantrópica: podólogo no cinema.

Quietinha depois de tanta balburdia, de bolsa nova, assití duas sessões do filme. Fui ao banheiro vasculhei minha bolsa nova, dinheiro só dez contos, um maço de cigarros, baton quebrado, uma conta de luz, dois grampos de cabelo e o melhor....uma caixa fechadinha do meu querido LEXOTAN. Foi a glória. Tomei logo dois prá relaxar e assim fui virando dia e noite no cinema buscando coisas no chão para comer, banhos esparsos, fumando à noite depois de tudo trancado e sem a menor vontade de voltar ao mundo da claridade.
Cinema também é diversão e eu me divertia só de não ouvir as vozes das pessoas que passam a vida querendo de mim a única coisa que nunca estive apta a dar, nãp posso contar o que é senão aumenta a fila. Lembrava das coisas de minha vida mas as fileiras das cadeiras me entretinham, elas nunca se movimentavam, nunca se dirigiam a mim como se eu fôsse uma a mais, pensava no meu serviço e era como se não tivessem passados quase 20 anos que trabalhava alí, e agora, não queria voltar nem para dizer adeus. Triste, sem nenhuma vontade de ir prá casa sabia que a felicidade de morar no cinema teria um fim. Quando as portas abriram para o início da primeira sessão saí meo trôpega e azaradamente dei de cara com uma amiga que me perguntou agressivamente: o quê você está fazendo aqui? Olhei firme nos seus olhos de espanto com o meus meio fechados pela intensa claridade, sorrí e apenas balbuciei, vim ver cinema. Cheguei em casa à noite depois de dar uns bordejos pela cidade, acendí a luz, o telefone urrava, atendí, nada importante. Troquei de roupa, apaguei a luz e enquanto escrevo essa história comemoro 9 anos de vida dentro dos cinemas da cidade, a cada semana um diferente. Consigo até escrever no escuro, uma dádiva!

3 comentários:

  1. Ri demais da deduda! kkkkkkkkkkkkkk
    Muito bom!

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  2. Ei Cristina, adorei o conto! sempre acho que ir ao cinema tem essa propriedade de nos fazer sair de cena e entrar num mundo outro... bjão!!!

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  3. Oi, Cristina,
    Obrigada!
    Rir é uma dádiva que só os deuses podem conceder. É uma arte, das mais sutis. Você tem esse poder: fazer rir!
    As expressões, com as quais você lida com mestria, conferem a precisão cômica das imagens sugeridas...
    A comédia é a tragédia que não se consumou ainda!
    A dor está ali, a fuga, a vontade de evadir-se
    nos dá a dimensão do trágico, mas a saída foi magistral...
    Fazer rir! E com que competência!
    Beijos,
    Gelik

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