sexta-feira, 14 de maio de 2010

SAIR DO MUNDO III


A véinha, de inha não tinha nada. Ela era esquálida mas grande, tão grande que estava sentada com as pernas abertas porque as próprias não cabiam no espaço entre as fileiras. O cabelo também era grande e solto, coisa do outro mundo. Ainda assustada com a minha brusca chegada, a anciã fêz um bico torto com a boca e me atravessou com um olhar satânico que me valeu uma fincada enviezada no estômago e uma lágrima no canto do olho esquerdo que desceu cara abaixo para ir ficar no balança mais não cai no lóbulo da orelha. A bicha devia estar adentrada nos oitenta e só Deus sabia o que a esgurida estava fazendo alí. Tinha nas mãos um saco de um quilo de biscoito de polvilho que devorava com a sofreguidão dos recém apresentados à comida. Dentro da boca os biscoitos viravam chocalhos, eram barulhos incompatíveis com a apresentação física do biscuitim, eu, por mais que tentasse não conseguia prestar atenção na película. A ruminante falava sózinha, xingava os artistas, blasfemava contra Deus e os homens, amaldiçoava a nora que, segundo ela, era a perdição do filho e me dava cotoveladas que se não me safasse com a habilidade que o fiz, não estaria aqui prá contar a história. De repente, na maior falta de respeito a provecta acendeu um cigarro e mediante meu olhar indignado retrucou, fala alguma coisa que te meto a mão no meio do focinho, foi o bastante, afinei. A devedora de cemitério era das violentas. Comecei a amaldiçoar aquele lugar que fui à busca da paz. Resolvi mudar de cadeira quando notei que a desumana já fumada estava meio cochilando. Levantei devagarzinho esperando um bote caso a despertasse, mas a véinha já estava mascando o sono e as pernas, de tão compridas, escancararam. Cena que até Deus duvida..

Até então eu ainda não tinha entendido direito o filme sei que era uma estória de dois irmãos que não tinham sapatos ou perderam, sei lá, o fato é que foram duas horas de troca infinda de sapatos para que os pais não descobrissem que um tinha perdido o sapato do outro. Eu sei que aquilo me pôs neurada, imagine que a essa altura da vida cheia de cataclismas e outras tragédias inevitáveis pelos homens, um par de sapatos pode alterar tão drasticamente a vida de duas crianças. Essa era a minha história apresentada na forma cinematográfica. Coisas irrelevantes assumirem proporções gigantescas. Fiquei com ódio dos pais dos meninos que poderiam até matá-los se soubessem da enorme perda, do professor que maltratava o menino quando êle chegava atrasado por causa da amaldiçoada troca de sapatos, e sobretudo dos meninos que não revelavam o grande segredo e viviam o calvário do revezamento de um par de tênis que ora calçava o menino, ora a menina. O sofrimento era enorme para ambos porque o que sobrava em um folgava no outro. Os meninos eram eu. O inferno por nada.

Fui para a última fileira e ali refestelei na cadeira, afinal a maratona tinha sido dureza. O filme estava menos palpitante do que a platéia, eu, exaurida pelas emoções, sentia vontade de dormir, sabe lá o que é enfrentar em menos de duas horas uma jovem desvairada e uma velhinha transgressora? Caí no sono do mesmo jeito que as pessoas dormem nos aviões, todos durinhos com a boca aberta em forma de O, tal e qual os meninos cantores de Viena. Quando acordei já estava “escuro”, o filme parecia no meio, não sei e na platéia havia várias pessoas, outras. Percebi que a primeira sessão já tinha acabado. Tentei olhar as horas mas não conseguia enxergar até que me lembrei de uma lanterninha que Bebeth, minha amiga, me deu, sou grata a ela e vejam bem, na época achei o presentinho meio fraco, mas naquela hora valia ouro, eram nove e quarenta da noite. Fui à casinha, lavei o rosto e voltei para procurar um lugar para dormir antes de terminar a sessão. Se o lanterninha me visse ia me mandar sair e eu já estava decidida a pernoitar no recinto. Fui prá lateral da sala, na penúltima fileira e devargazinho deitei no chão. O travesseiro foi minha muda de roupa. Deixaria o banho para o dia seguinte. Alí começou meu exílio voluntário. Passaria uma semana dentro do cinema. Eu precisava disso, já não aguentava tanta pressão, perguntas que não tinham respostas, afinal estava vivendo uma vida que eu não queria para o pior inimigo, só para não fugir à tradição da maxima. Já deitadinha sentia que aquela seria uma noite de liberdade. Nem bem me acomodei sentí a transição do estado de leve torpor ao sono profundo. Não deu outra. Acordei no escuro sem saber onde estava, imediatamente me lembrei da minha nova morada, dormí mais um tempo indefinido até que fui acordada com a conversa de duas mulheres que deveriam ser as faxineiras do sala de cinema. Sacaneada com a invasão domiciliar tive algumas idéias para assustá-las mas preferí dormir mais um pouco, é lógico que se estavam começando a varrer as primeiras fileiras, minha casa seria deixada para o dia seguinte. Quando acordei novamente com vozes percebí que estava começando a sessão, faziam 24 horas que eu estava alí, relegada ao ostracismo ...felicíssima.  (continua no Sair do Mundo IV)

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