terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Dê-me um dia, que seja o dia de Natal

Hoje vou falar dos homens comuns em um dia extraordinário: o dia de Natal. A idéia pode ser um tanto delirante até insignificante para alguns, mas mesmo na recusa sectária dos que nada creem, o dia de Natal não é um dia comum, nem para os homens extraordinários. Por isso, sobre Lou Andreas-Salomé, mulher que fez da vida sua grande paixão, Freud escreveu: “Você tem um olhar como se fosse Natal”. Assim, com essa sensível comparação metafórica Freud agradeceu a Deus, no reconhecimento de sua existência, a via luminosa que o permitiu devassar o mundo do inconsciente. Ao homenagear Lou Salomé, Freud se curvou perante o ópio da fé.

Não vou pensar no universo religioso e sua magia, limitar-me-ei ao significado do dia de Natal e seu ritual terapêutico nas almas dos homens do mundo Ocidental. É patente a profunda influência do dia 25 de dezembro no calendário onírico das pessoas. O tempo que o precede pode ser curto ou longo, coletivo ou solitário, triste ou alegre, mas nunca é um tempo indiferente. Esse é o tempo que dedicamos às incursões na memória. São reminiscências longínquas, perdidas, mas que ocupam um lugar único no espaço nobre do coração. É a saudade, maior punição do homem, de um outro ou de outros Natais evocados para dar um alento à alma e perpetuar por instantes o que pode ter sido apenas um glorioso acaso. É a “Noite Feliz” que nos reporta às nuanças de momentos tão particulares, que o primeiro acorde atualiza o tempo. Sentimentos adormecidos durante 364 dias de súbito tomam o vulto assustador de realidade. São os presentes. Nada no mundo se assemelha à beleza do ato de presentear, de materializar simbolicamente um sentimento, uma deferência do espírito e o privilégio de estar dentro de algum coração no momento da escolha. Como são queridos os presentes. Só um ramo de mirra, é o bastante. São as árvores iluminadas, as luzes que se acendem desesperadamente para se sobreporem a qualquer sombra que por ventura ameace a transparência do Dia. É a festa, as delícias, os néctares, os risos, os abraços, as surpresas, as chegadas inesperadas, a felicidade sem fim.

É tudo ou nada. Para a maioria é nada. Esse é o outro lado da moeda, o que prevalece no mundo dos homens, e aí, sem distinção de pontos cardeais, aqui e alhures é o lado real...nada. Não existe Natal nem no sonho, nem na fantasia. Não se sonha com o desconhecido. As festas, iguarias, néctares, etc... são inimagináveis. Presentes? Há milhares de mãos esfarrapadas estendidas pelo mundo afora que não encontram nada que as façam sentir merecedoras da própria vida, que dirá de um presente. Visitas à memória? Melhor adiar. Buscar o quê na esterilidade do passado? Luzes?
Essa história de “Feliz Natal” é um vício de linguagem. Falácia do mundo das palavras. Quem conhece minimamente a história, só tem lugar para tristezas no coração sempre em choque com a animação do espírito. A efemeridade do agora, intervalo entre as angústias do passado e falta de perspectivas para o que será, não permite vida longa à felicidade. Quem pode ter um dia feliz depois da retirada de milhares de pessoas sob a mira da morte em Kosovo? Isso foi ontem, um simples exemplo perto de outras barbaridades manifestadas pela natureza humana. Como desejar um “Feliz Natal”, ao dia seguinte, que não aparente cínico a alguém que traz na alma golpes mortais instalados na véspera? Eu diria que não há como viver o Natal os homens de consciência delicada, marcados pelo vivido como uma tormenta em alto-mar. Não há mais mãos para segurar esse leme. É na indiferença do homem à sorte do outro, sintetizada na aviltante dupla “problema seu” e “eu não posso fazer nada”, a razão da história do homem estar imersa em um profundo mar de lágrimas.
Mas, que ironia...o universo das representações não sucumbe, não se curva perante os desvarios da humanidade. Hiroshima transformou-se em meu amor. Vão aparecer sapatinhos em algumas janelas, tem Papai Noel confirmando a alegoria do Natal em toda parte, Lennon continuará cantando que a guerra acabou. Feliz Natal...é a ordem do dia.

Um comentário:

  1. Oi, Cristina,
    Como me fez bem ler "Dê-me um dia ,que seja o dia de Natal"!
    Você transcreve com arte preciosa o nosso sentimento que se atropela no coração e na garganta, sem encontrar saída. E aí, então, essa emoção, se organiza, se torna serena e clara, e... como faz a poesia, suas palavras, resgatam a vida.
    Feliz Natal, todos os dias!

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