sexta-feira, 26 de junho de 2009

“Aprendi com as primaveras a me deixar cortar para poder voltar inteira." Cecília Meirelles

Sempre fui um intrigada com a mente humana. Desde a mais tenra idade ficava impressionada com a imprevisibilidade das pessoas que me rodeavam. A mesma brincadeira podia ser motivo de risos incontroláveis ou de surras inesquecíveis. Eu era invocada com aquela estória de gente ter mau humor, eu era a exceção, estava sempre bem humorada e feliz. Observava mudanças tão súbitas nas pessoas que criei uma categoria específica para os adultos: “gente esquisita”.Quando cresci e virei gente grande percebi que engrossei as fileiras das “gente esquisita”. Acho que hoje sou o campeã de esquisitisses.

Ainda naquele tempo, por incrível que possa parecer, eu me preocupava com o que eu seria crescesse. Tinha medo de não ter um único lugar na terra onde eu pudesse ser aproveitada para trabalhar. Lembro-me de passar noites inteiras acordada me imaginando um nada, uma sem sorte, uma miserável. Até que superei meu drama de criança ansiosa, escolhi minha profissão, eu seria mendiga. Chegava a ensaiar um olhar que sensibilizaria uma estátua para pedir um pedaço de pão. Resolvi que mudaria de cidade viveria pelas ruas aos trapos, andaria pelo mundo, pedindo esmolas e contando às pessoas minhas desditas. Eu não queria amores, via gente grande chorar por causa dos amores perdidos, não teria filhos, vi minha vizinha chorar quando perdeu um entre seus dezesseis filhos, não queria casa, tinha que pintá-la de dois em dois anos, não queria contas, elas brotavam todo mês, sempre achei que deveriam acompanhar as estações do ano, uma a cada 3 meses. Era isso, estava decidida, eu seria um pão velho, esse era o nome que dávamos aos infelizes pedintes que tocavam a nossa porta. A fantasia era tão real que chegava a ter pena da inocência de meus pais pagando escola para mim, eles não sabiam, eu já escolhera minha profissão, mendiga por vocação.

As reminiscências de um tempo em que todos os dias foram domingos de sol me fazem rir. O que passa na cabeça de uma criança é coisa do outro mundo, não? Não. O que passa na cada cabeça de qualquer um 'e coisa do outro mundo, coisas inacreditáveis. Dizem que a criatividade humana é infinita, vejo isso com uma certa apreensão. Há quem veja como a mágica da vida. Cada um com seu cada qual, belo e triste ditado.Cada um tem seu próprio dialeto, no mundo há tantos dialetos quanto o número de habitantes. Há escolas para ensinar todas as línguas, exceto o idioma da alma. Esse é indecifrável, jamais o dominaremos.

Não sei porque fui cair no buraco da mente, pensar, que castigo. Não sei porque não segui minha nobre vocação de mendigo, sei que ainda posso ser um mendigo de sucesso mas sou covarde, não tenho coragem, não tenho força para dar um adeus para sempre a tido que sei da vida e cair na ausência de memória. Descobri uma coisa nova em mim. Sou artista, estou sempre fingindo não me horrorizar, mas como meus amigos não sabem que sou a senhora dessas letras, eu horrorizo e confesso que temo pela perda de controle e o esganamento até a morte de qualquer um deles. Meu Deus, quanto absurdo, quanto ódio, quanta inveja, tudo isso me é contado e eu escuto sem expressões faciais ou orais que traduzam meu enorme desprezo pela humanidade.

Percebo que nos diálogos que me são reproduzidos as pessoas nunca dizem às outras a verdade, a enganação e ocultação é a ordem do dia. Estou tão abismada com o cinismo mundial, que outro dia quase esbofeteei a cara de um colega que me desferiu um falso elogio, disse- me o sacana que eu estava linda para minha idade. Lógico que é mentira, sei que ele pensou, essa mulher virou um espectro, um marmota, mas como todos, falou exatamente o contrário.

Se meu padecimento fosse só por saber da vida de meus conhecidos estaria bem. Utilizaria o princípio da não generalização e atribuiria só a esse pequeno grupo essa malignidade por nascimento, pensaria, aqui está concentrado o mal da humanidade, dei azar. No entanto cada pessoa se desdobra em mais de 100 pessoas pelo menos e eu passei a odiá-las todas. Só me compadeço daqueles que cultivam a baixa auto-estima, considero uma enfermidade quase incurável, mas nutro um ódio sem fronteiras pelos que se aproveitam desses e tripudiam. Como pode ver, paciente leitor, estou à beira de um colapso nervoso. Vou relatar o caso que me trouxe à prisão e vocês julgarão se essa sentença foi justa ou não. Antes porém darei o meu ponto de vista. Como estou pela minha alta periculosidade em uma solitária, acho-a justa e para mim de grande benefício. Espero que no dia da libertação não ver nunca mais um rosto humano. Dispenso os espelhos mas não possuo a faculdade de dispensar a memória, essa é minha verdadeira prisão.

Não suportar a idéia da realidade que me foi imposta é destituir de significado o sofrimento que a acompanhou. Isso para mim é pior do que o fim do próprio sofrimento. Eu não tenho mais dúvida que toda a degradação moral e emocional que tenho vivido, tem se convertido lentamente em uma ascensão espiritual, em razão disto, aceito o que me foi tão asperamente impingido senão seria o mesmo que não tê-lo vivido. Agora quase 3 dias depois, eu assumo perante a mim mesmo uma humildade que se por um lado ela é silenciosa, por outro lado ela tem uma cara que quero conservá-la.

O mundo continua sua rota, algumas pessoas podem sofrer sem serem drasticamente importunadas. Isso não sucedeu comigo. Todas as intempéries que bateram à minha porta, eu as deixei entrar, amigos e inimigos encontraram o caminho desempedido e entraram. Aqui eles vieram e com ou sem piedade fizeram de mim a depositária de suas desventuras, de seus infortúnios, de suas próprias tragédias. Eu represento para todos, e disso não tenho dúvida, aquele traste que mais uma ou menos uma já não faz a mais mínima diferença. Meu sofrimento já é um patrimônio que, acredito, ninguem o aceitará como herança.

Pela primeira vez eu reconheci o mensageiro da morte que me entregou uma mensagem e partiu. Parece melodramático, não? Mas foi como me senti. Deixada completamente só de tudo que me pudesse consolar, tive que suportar a quase irresistível dor da perda.

Minha tristeza foi algo tão inenarrável que ao me ver frente ao espelho pouco depois de sua saída, foi o mesmo que ver um sudário estendido. Se essa não fôsse apenas uma analogia suave do que sentia, mas a realidade, com certeza eu estaria melhor. Meu mal era uma espécie de nevoeiro na cabeça que nem os médicos nem os padres podiam curá-lo. O esfôrço para minorar a dor da apunhalada servia apenas para aumentá-la e ao mesmo tempo abrir em minha alma um abismo vago apenas preenchido pela irrespondível questão: Por que êle fêz isso? Sem resposta eu sentia meu corpo cair prostrado, inerte, agonizando internamente enquanto as lágrimas desciam pelo meu rosto como um rio que leva todas as riquezas de seu leito. Ao lado disso a intensa dor: ele não me ama mais. Não, ele nunca amou. No entanto, isso era só o comêço.

Nos dias que se seguiam, a coisa apenas piorou .O mundo tormu-se para mim a configuração do estático, tudo perdeu o movimento, até os objetos em seus lugares eternos se tornaram olhos abertos para cinicamente contemplar a minha dor.

Eu sempre soube que por êle tive um sentimento puro, daqueles que não se embaraçam com dúvidas, que se conservam porque são raros. A dor da perda foi infinitamente maior que a felicidade que tinha ao pensar que o possuía. Se me fosse dado o direito de reverter o tempo eu abriria mão da felicidade que tive com ele para não confrontar a dor de sua partida. Por ele eu tive a mais intensa e extensa paixão.
Foi em uma noite como outra qualquer que ele chegou mais tarde que o usual com um sorriso afivelado na boca. Meu coração, antecipando o golpe, batia como o sino da igreja, algo me ia ser anunciado, maldita epifanía Seu olhar mergulhado no nada denunciava placidamente aquilo que lhe ia na alma. Maldito momento, era a declaração da minha guerra particular, meu pequeno Vietnam. Ele tinha outra.

O choque da frase dita por ele caiu em meu espírito como bala de chumbo no alumínio. Em sua fala estava contida todas as delícias das execráveis ironias do desprezo triunfante. Talvez fosse a lembrança da outra que lhe ressurgia seguida de atrações vertiginosas ao ponto de perder a altivez e lançar em minha cara a felicidade de se ver livre de mim. Ele exibia para mim, o que até agora me dói relembrar: a monotonia da retórica do adeus, sempre da mesma forma, sempre atenuada por elogios infrutíferos para revestir a saída com a soberba de quem está por cima. Ele que me parecia um homem de muitos paixões não soube detectar a dessemelhança de sentimentos sob a igualdade das expressões. Devo ter dito coisas pesadas, não sei, mas sei que em relação a ele, tive sentimentos nobres, muito nobres.

Eu sei que usou a medida que considerava certa. É com certeza também que eu sei que não conseguiu controlar o exagero do que sentia para reter na mão os mísseis que me atirava. Talvez ele não tenha conhecimento do efeito detonador de cada gesto, palavra e até mesmo olhar. Ele tinha outra.

Fui à sala, sentei-me no sofá, e então a ternura dos dias passados voltava em meu coração. Eram lembranças das frases poéticas que me foram ditas um dia, mas que apareciam intercaladas com pensamentos imprecisos, nostalgia do passado, e um terrível pavor pelo que ainda estava por vir. Eu já previa o que estava por vir. Veio.

Comecei a rezar, com a esperança de que do céu descesse uma resolução divina; e, para atrair a comiseração de Deus prometia o incumprivel. Nada porém silenciava o lamento interno e a febre que tomava conta de meu corpo, provocando um incomodo que nenhuma morfina seria capaz de acalmar. De desesperada eu me via apoplética, bombardeada pela terrível notícia que para ele saiu da maneira tão tranquila. Eu pasmada pela apunhalada mais profunda que me foi tão implacavelmente desferida. Ele tinha outra.

O amor que lhe dediquei foi colocado ao lado dos trastes que não queremos mais. Pouco a pouco eu me tornei a protagonista do escárnio, das pilhérias, da vingança, dos ódios das pessoas. Tenho também a conciência do quão irresponsável é o comprometimento amoroso. Eu posso ter clareza que a passividade, a tranquilidade de um não tem nada a ver com o inferno do outro. Nada mais conta. Eu me dei conta que o desrespeito de uma criatura pela outra se localiza no patamar do que de mais hediondo há na natureza humana. Nietzche dizia que quando a casa está em chamas até de comer se esquece. Mas depois come-se sobre as cinzas. É o que estou fazendo.

Hoje eu me sinto a vontade para bradar do alto das montanhas todo o sentimento que dividi com ele, ou melhor, comigo mesmo. Agora só me resta uma coisa: a resignação. Eu perdi e está perdido.

No entanto, não posso agora deixá-lo partir carregando no peito qualquer culpa por ter descolorido minha vida, pelo menos por algum tempo. Estou convicta de que fui eu mesma que a destruí. Eu deixei de ser a controladora de minha alma. Ninguém por grande ou pequeno que seja pode se perder a não ser por meio de suas próprias mãos. Por pior que seja o que o mundo me fez, mais terrível foi ainda o que fiz a mim própria. Eu gostei mais do outro que de mim, grande êrro.

No fim, depois de tudo, "se assim foi é porque assim é que tinha de ser, se assim o foi". (Guimarães Rosa)

Outra revelação:
Já não me lembro de seu nome.
Já não me lembro de sua fisionomia.
Já não escuto sua voz.
Será que fui eu que vivi aquela via crucis? Acho que não.

Isso que segue abaixo pode ser aplicado a qualquer objeto de nosso amor, não há um só destino, são vários. Recomeçaria tudo outra vez....com o novo eleito.

PARA QUE SEJAMOS NECESSÁRIOS

Transfere de ti para mim essa dor de cabeça, esse desejo, essa violência
Que careça em ti o meu excesso e que falte o que tu tens de sobra
Que em mim perdure o que te morre cedo e que permaneça o que tenho perdido.
Que cresça, se desenvolva um teu sentido que em mim desapareça.
Dá-me o que possuir tu o que não te importas
E eu multiplico o que te falta e em mim existe para que nosso encaixe forme uma unidade – indivisível que não se possa subtrair uma metade.

Bruna Lombardi
No Ritmo dessa Festa

3 comentários:

  1. BELA E TRÁGICA NARRATIVA.
    EMOCIONANTE.
    UM FIM SOLAR.
    BRILHANTE. LUMINOSO.
    GOSTEI DA SUA ESCRITA

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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