domingo, 18 de outubro de 2009

O CIRCO I


Quando Rita chegou à Colina Velha todos os habitantes da pequena cidade prestaram atenção nela. A moça não tinha nada que a qualificasse ou a desqualificasse, ela era simplesmente estranha. Ninguém sabia de onde vinha, ou a que vinha. Ela chegou à noite e durante toda a madrugada ficou sentada no único banco da rodoviária, o vigia noturno não arredou dela seus olhos, ela não chegou a percebê-lo. Quando o dia começou a ensaiar seu nascimento Rita levantou-se e caminhou a passos curtos e lentos para a direita, caminhava sem destino. Por todos os lugares que passava as pessoas a olhavam e se entreolhavam buscando uma apresentação ou uma pequena saudação, essa ou a outra não vieram. Depois de uma longa caminhada chegou ao acaso em uma fazenda muito bem cuidada que ficava a quase 8 Km. da rodoviária. Ao lado da porteira estava sentada em um pequeno banco de madeira uma mulher já adentrada nos quarenta, de rosto suave porém forte. Sem que Rita lhe endereçasse os olhos Dona Eralda interpelou-a, está em busca de serviço moça? Com um leve movimento de cabeça Rita assentiu e passou indiferentemente pela porteira.
Desde esse dia passaram-se 15 anos. Rita que à época tinha 16 anos, trabalhou de sol a sol para Dona Eralda que sem jamais tê-la visto acolheu-a em sua casa.
Era uma família pequena onde a matriarca Eralda comportava-se como se tivesse sido ungida por Deus para imperar naquele lar sem concorrentes até a morte. Tinha três filhos homens, adultos e de boa aparência. Os três eram inteiramente submissos a ela. Na cidade de apenas 3000 habitantes, eram conhecidos por “as meninas de Eralda”. Essa pilhéria que corria também pelos arredores da pequena cidade, não arranhava em nada a boa relação da mãe dominadora com os filhos dominados. Muito pelo contrário, para eles era confortável que ela, sabidamente excelente administradora, cuidasse da fazenda extraindo-lhes a pena de pensar e trabalhar. A ela eles deviam tudo que tinham na vida além da própria vida, o único preço era a obediência, a qual pagavam com muito gosto.
Os primeiros meses de Rita na fazenda de Dona Eralda provocaram uma grande curiosidade nos habitantes da cidade. Rita não falava de si nem dos outros, respondia evasivamente às perguntas que os bisbilhoteiros lhe faziam, nunca namorou ou olhou particularmente para qualquer rapaz da cidade, ninguém jamais a procurou, seu sobrenome e origem jamais foram revelados. A vida de Rita era um mistério. Mas como a pátina do tempo a tudo alheia, Rita saiu privilegiada. Pouco demorou para que ninguém mais se importasse com ela, assim como ela nunca se importara com ninguém.
Rita era uma moça de estatura média, pele branquinha, cabelos pretos e longos, os olhos eram castanhos com um formato ligeiramente amendoado que só emprestavam vida ao seu rosto nas raras vezes que Rita sorriu nos quinze anos que ali viveu. O silêncio, a discrição, e a alienação a tudo que lhe rodeava só desapareciam quando após a chuva o sol o arco-íris fazer seu admirável desenho no céu. Nesses dias Rita dançava, cantava, corria em círculos pelo mato, pulava de pedra em pedra, subia e descia das árvores, balançava nos galhos mais altos das mangueiras e de lá saltava com a leveza e naturalidade de um pássaro.
A outra alteração no comportamento de Rita se dava uma vez ao ano, no dia 15 de abril, ela chegara à fazenda no dia 17 do mesmo mês. Nesse dia Rita levantava-se mais cedo que o costume, e se dirigia de cabeça baixa a um jardim só de árvores de jasmim, que ela plantara perto do paiol, na parte mais alta da fazenda. Certa noite enluarada o jardim de Rita exalou um perfume tão forte que ela o considerou como portador de presságios. Essa impressão lhe bateu tão forte que ela dedicou aos movimentos celestes uma noite inteira de contemplação, talvez estivesse à espera de algum sinal do Alto. Essas eram as únicas duas demonstrações da existência de Rita, afora seus afazeres domésticos cumpridos impecavelmente, sem queixa ou esquecimento. Rita era uma moça estranha e essa imagem ela impôs em Colina velha.
Os filhos de Dona Eralda amavam a dedicada empregada sem que ela jamais tivesse lhes dirigido uma única palavra. Quando levantavam pela manhã, o café já estava à mesa com os agrados favoritos de cada um, quando saiam as roupas estavam limpas e passadas, quando iam dormir a cama estava preparada e o pijama dobrado sob o travesseiro afofado como para melhor afagar seus sonhos. O mesmo zelo Rita dedicava à Dona Eralda, esta sempre atenta à estabilidade do comportamento de sua mais fiel ajudante. A única vez que a patroa adoeceu, Rita entristeceu como se estivesse experimentando uma possível orfandade. Demonstrou seu sentimento passando todas as noites sentada no chão ao lado da doente até o restabelecimento da mesma. Dona Eralda jura que durante a noite ouvia um suave murmúrio emitido através do silêncio de Rita. Afirmava a enferma, que podia identificar solfejos de diferentes canções de ninar e talvez um umedecimento nos olhos de Rita. Podia também ser apenas uma impressão.

Um comentário:

  1. Oi, Cristina,
    Delicioso!
    Esse conto me remete a Mia Couto...
    Nos "picadeiros" da nossa existência, vamos cumprindo, a nosso modo, a tarefa de viver.
    Beijos,
    Gelik

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