segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O CIRCO II


Um belo dia daqueles que não ameaçam a ninguém, o céu estava colorido de azul sem que uma única nuvem maculasse sua pureza, enquanto o tempo esperava passar-se, ouviu-se de longe uma música que aumentava à medida que se aproximava da cidade. De repente surge uma caminhonete iluminada que cantava a plenos pulmões músicas de gente feliz. Atrás dela seguia uma grande fila de caminhões coloridos. Toda aquela alegria só se assemelhava ao cortejo de um circo, e o era. Nada acontecia em Colina Velha, a surpreendente chegada de um teatro ambulante era um evento de tão soberba importância, que os mais cultos e viajados tinham que contar à pobre população o que era aquilo, essa não sabia o que era um circo, ou nunca tinha visto um. A honra da visita trouxe tanta emoção para os colinenses que a natureza se viu obrigada a solidarizar-se com eles e tomar sua diligências. O vento acordou de seu sono de quase três semanas e varreu desvairadamente as ruas. A poeira era tanta que o céu encarregou-se de lavar o ar, executou a tarefa tão rapidamente que em menos de dois minutos já não haviam sinais que denunciassem o grande temporal, Colina Velha estava vestida de gala para a festa, seria aquilo um milagre? Depois de ceder aos caprichos do céu, o sol voltou a brilhar com seu singular esplendor, mas sua vocação democrática abriu alas para que um enorme arco-íris, imitando a aurora boreal, desse o toque final no divino show. Velhos, jovens, crianças corriam à rua principal da cidade para receber o nunca visto. A cidade estava em estado de torpor. O circo era a ilustre visita que Colina Velha recebeu de braços abertos e sorriso escancarado.
Frei Martinho conhecido e respeitado por seu fervor religioso revelou-se quando viu o grupo de palhaços no grande desfile. Mandou que os moleques da cidade, em rara concessão, repicassem os sinos da igreja. Gritava desesperadamente para os fiéis que as atividades religiosas estavam suspensas enquanto o circo estivesse na cidade, justificando que o sagrado e o profano não poderiam atuar juntos.
Eufórico, confessou a uma beata que não lhe dava trégua, que sempre sonhou em ser palhaço, mas como não tinha graça nenhuma entrou para a Ordem de São Francisco de Assis. A mulher que nutria pelo padre uma católica adoração, ficou tragicamente arrependida por ter confessado aquele palhaço frustrado seus pecados veniais e mortais. Mas o melhor ele guardou para si, era o segredo que mantinha sob a batina. Todas as noites depois da missa quando estava a sós na Igreja de São Francisco, onde era pároco há nove anos, Frei Martinho, se livrava da farda, colocava uma calça listradinha e uma camiseta justa e cuidava do altar fazendo gracinhas, revirando-se em cambalhotas e pondo língua para a imaginária platéia. Um dia, não há muito tempo, quando estava no auge de sua apresentação, bem defronte ao Santíssimo, seu Áureo, o sacristão, flagrou Frei Martinho ensaiando um contorcionismo incomum em um clérigo. Horrorizado seu Áureo deu um gritinho frouxo enquanto o esperto e lépido Frei, aproveitando-se do faniquito do escudeiro, simulou um desmaio que lhe valeu duas semanas de cama e uma batelada de exames. Doutor Peninha, consagrado na cidade como o curador, comunicou a todos que o Frei tivera um aneurisma inoperável e pelo tal não poderia exercer suas funções de pároco. A cidade orava dia e noite pelo Frei que só queria se ver livre de todos para dar seu costumeiro show para os santos que adornavam sua igreja, fiel e imóvel platéia.
O reconhecimento da graça do Frei palhaço veio no dia que Jesus lá de cima da cruz pediu bis. Foi a glória para Martinho, bisou cinco vezes e pacificou o espírito de palhaço frustrado substituindo-o pelo de palhaço do Senhor. Uma honra evangélica que o Frei jamais esqueceu, esse era seu alento diário, "Jesus é meu tiete". Agora, com a chegada do circo a festa seria real.
Enquanto tudo acontecia, Rita estava muito longe da algazarra. Tinha saído a cavalo para buscar uma novilha desgarrada, aliás montava como uma amazona, e não escutou a música do circo. Mas ao ver o arco-íris começou a se ocupar de seu ritual, dessa vez dançando sobre o dorso do cavalo, quase alado. Dona Eralda que sempre respeitou os desvarios ocasionais da moça, foi procurá-la onde a mesma reverenciava o arco-íris. Ficou chocada quando viu Rita dando saltos artísticos com equilíbrio absoluto em cima do animal trotando, que com ela formava uma dupla perfeita. Dona Eralda chamou-a, venha Rita, venha ver a novidade. Sentido-se ultrajada por ter sido interrompida no seu único momento de êxtase, Rita não respondeu a patroa, pela primeira vez.
Desconcertada pelo desrespeito Dona Eralda ameaçou-a, você será a única da cidade a não ver a chegada do circo. Ao ouvir a palavra circo Rita enrijeceu-se, era como se algo absolutamente inexplicável tivesse operado dentro de seu corpo endossado por um tremor da alma. Rita saltou do cavalo como fazem os equilibristas e já no chão perfeitamente de pé olhou para Dona Eralda com um daqueles olhares que ficam impressos para sempre no alvo. Assim ficou por uns minutos até que a patroa compadecida a envolveu com seus braços fortes e amparou a pobre moça. As pernas de Rita foram dobrando de mansinho até perderem toda a força jogando-a ao chão. Deitada e abraçada em si mesma Rita chorou. Dona Eralda, chocada com o inesperado espetáculo que acabara de assistir, de alguém que julgara de pedra, ajoelhou-se e perguntou, o que aconteceu minha filha? Entre dois riachos que corriam pelas curvas de seus lábios trêmulos, Rita olhou para aquela que um dia a acolheu e com austera voz de fiapo articulou um não sei não. Dona Eralda lembrar-se-ia para sempre daquele olhar irremediavelmente estilhaçado. Ela sabia que o subterrâneo da alma de Rita era impenetrável. Perante aquele coração sombrio, repleto de temores, Dona Eralda sentou-se escrupulosamente ao lado da leal empregada, abraçou-a fortemente e essa sem nem um cisco de resistência aninhou-se no colo da patroa. Ali ficaram imóveis até o sol esfriar e ir esquentar as antípodas.

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