sábado, 24 de outubro de 2009

O CIRCO III




Ao dia seguinte a cidade mal dormida se preparava para a avant-première do Gran Circo Trota Mondo. Rita que nunca saía dos limites da fazenda, com a anuência de Dona Eralda, ultrapassou-os uma hora antes do início do espetáculo e entrou com toda sua estranheza para dentro da lona colorida, ela também queria ver o circo. Assistiu impassível o show até quando se deu a hora esperada por todos, a apresentação dos trapezistas. A música empolgava a platéia, ao lado dela os tambores marcavam a cadência do perigo iminente. Rita olhava entorpecida para os trapezistas. Talvez os invejasse em seus mirabolantes vôos ou então na intimidade que demonstravam com o trapézio. Acabado o show foi anunciado que a cada dia da temporada os artistas apresentariam uma novidade, e no último dia do circo em Colina Velha os trapezistas, com os olhos vendados, apresentariam o mundialmente famoso triplo salto mortal.
Rita foi a todas as apresentações acompanhada por Dona Eralda que se sentia muito feliz em saber que Rita gostava de algo mais que o arco-íris e suas árvores de jasmim enfileiradas em ordem crescente. Dona Eralda observou que as mãos de Rita ficavam úmidas e cerradas enquanto as piruetas no ar não cessassem. Realmente o circo exercia um fascínio mágico em Rita, a estranha Rita.
No derradeiro dia da estadia do Gran Circo em Colina Velha, Rita amanheceu com os olhos inchados, Dona Eralda desconfiou que a moça teria chorado durante a noite, mas nada comentou. Uma hora antes da apresentação encaminharam-se para o circo, afinal seria o dia do grande show. Sentaram-se na primeira fileira e dali assistiram os palhaços e suas palhaçadas que Rita não achava graça, viram o contorcionista, viram o desfile de cavalos com os equilibristas dando cambalhotas sobre os animais com precisão matemática, viram os domadores que com apenas um chicote controlavam as feras que pareciam cansadas daquele cativeiro perpétuo. Depois de quase duas horas de apresentação chegou o esperado Gran Finale, em fila os trapezistas entraram no picadeiro correndo e fazendo mesuras ao público que regozijava de felicidade.
Começou o show com as acrobacias no trapézio, piruetas no ar, troca de duplas, um verdadeiro ballet voador onde o tempo e o equilíbrio significavam para o artista a própria vida. Era o mundo circense encantando e provocando a mais forte adrenalina nos pacatos moradores de Colina Velha. Depois das apresentações mais simples os tambores começaram a soar de forma rigorosa impregnando o ar com o suspense que anuncia a morte. Os trapezistas subiram até o trapézio e fizeram algumas apresentações até que o silêncio invadiu todos os espaços da cansada lona, que tremia ao som dos tambores, vigorosos e ameaçadores tambores.
O primeiro salto mortal, foi exibido por um rapaz muito baixinho e magro, o sucesso foi tão grande que as arquibancadas balançaram-se com o entusiasmo da platéia. O segundo salto foi a estréia de um rapaz jovem, muito bonito, vestido de branco e dourado, para ele aquela era uma noite de gala, seu salto seria o triplo, o mundialmente famoso salto mortal triplo. O jovem teve seus olhos vendados, sentou-se no trapézio e começou um leve balanço enquanto o companheiro que lhe faria dupla esfregava nervosamente as mãos. A rede foi tirada e o silêncio sepulcral tomou o lugar como se tivesse vindo para ficar. Nessa hora Rita à semelhança do branco do mármore preservou seus olhos de qualquer imprevisto. Poucos segundos depois os aplausos, assobios e gritos invadiram o circo. O salto foi perfeito, impecável. Para os olhos cerrados de Rita o som informava que a vida vencera à morte. O jovem emocionado abraçava os colegas de tão perigosa façanha e com os braços levantados agradecia à fiel platéia. Nesse momento todos os artistas do circo entraram no picadeiro, fizeram um agradecimento coletivo a todos os habitantes da cidade. Sob a vibração incessante do público as luzes foram apagadas uma a uma até que a meia luz o circo ficou inteiramente vazio.
Na manhã seguinte quando Dona Eralda chegou na cozinha viu que Rita ainda não se levantara, foi ao seu quarto e ela ali não se encontrava. A mulher que já tinha uma verdadeira afeição pela moça, sentiu uma profunda dor no peito, mas entendeu que ela desapareceria como apareceu, sem uma palavra.
Na rua principal da cidade os caminhões do circo já se encontravam perfilados para a partida. Os habitantes também estavam perfilados para a despedida. Depois dos motores ligados começou o lento movimento dos carros deixando para trás uma cidade tristonha com saudade antecipada.
Andaram quase quatro quilômetros quando o motorista da caminhonete deu uma súbita freada à entrada de uma ponte muito extensa. Bem em cima da murada que ladeava a ponte estava uma moça se exibindo, à moda dos malabarismos apresentados pelo circo. Seu Fernandez, dono do circo, sentado ao lado do motorista sentiu um tremor percorrer lhe as veias, era como seu sangue mudasse a direção do fluxo. Ele conhecia aquele corpo esguio, aqueles cabelos negros que ao vento voavam como flechas, aquela leveza no salto e equilíbrio na parada. Não, no mundo não havia igual. Desceu enlouquecido da caminhonete gritando: Lina, minha filha, meu amor, até que enfim eu te encontrei. Jogando-se tragicamente no chão, deixava que grossas lágrimas escorressem-lhe pelo rosto amargo e enrugado, lamentava pelo tempo de sua ausência que tamanho sofrimento tinha infringido a ele. Rita, indiferente à cena, prosseguia em evoluções perfeitas.
Contrariamente a exuberância de sua apresentação, seu espírito, em dolorosa incursão à memória ouvia como se fosse naquele exato momento, os gritos furiosos de seu pai há quinze anos atrás, quando ela deu à luz a um filho e foi covardemente expulsa do circo, depois de ter a criança violentamente arrancada de seus braços. Ainda sentia no rosto o peso da mão de D. Fernandez , para livrar-se dela que o agarrava desesperadamente suplicando por clemência e piedade. Ressentia da impostura de sua mãe que nem por um segundo interferira por ela para aplacar a fúria do pai. A sua mente vinha o olhar cínico de Jorge, o domador de animais, que brutalmente a domou e acovardou-se para confessar a verdade perante a ira do patrão. Seu filho não tinha pai. Jogada para fora do trailler Rita, com apenas quinze anos, foi abandonada à própria sorte.
Desesperado, arrependido e culpado, Dom Fernandez explicava à Lina que tudo aquilo tinha sido apenas uma reação de momento, implorava por seu perdão, pranteava pelos quinze anos sem a filha adorada, jurava que por todo esse tempo, encontrá-la era sua obsessão. Enquanto os artistas se acercavam de D. Fernandez , o trapezista que dera o salto mortal triplo na noite anterior, desceu do trailler para ver o que estava acontecendo do lado de fora. Quando o viu, o avô gritou, venha Yuri, essa é sua mãe, ela voltou Yuri, ela não vai nos abandonar nunca mais. O jovem a olhou com o ar de desprezo do filho abandonado pela própria mãe. Rita parou como se estivesse em estado de concentração. A palavra abandonar ecoava em seus ouvidos e tinham o efeito de lâminas dilacerando seu corpo. Seu pai, sem consciência do ódio irreversível e sem limites da filha, foi se encaminhando cambaleante para sua direção com os braços abertos e uma certa expressão de alívio na face até então transtornada. Rita balançou negativamente a cabeça, lançou um olhar mortal para o pai, andou três passos para trás e seus pés decididos impulsionaram seu corpo para alto no mais perfeito salto triplo mortal. Não tinha os olhos vendados, a rede foi a correnteza do rio que a acariciou e acolheu como o fez Dona Eralda, seu anjo da guarda.

Um comentário:

  1. Oi, Cristina,
    Aqui estou novamente apreciando seus textos.
    Essa trilogia é uma perfeita "Tragödie"!
    O caminho da verdadeira investigação da alma humana é a representação e você é muito feliz nas suas representações. Vou me inspirar em W.Benjamin para afirmar, sobre a alma humana, você a torna visível: "não desnudamento, que aniquila o segredo, mas revelação, que lhe faz justiça."
    Beijos,
    Gelik

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